quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Crônicas

Guia turístico, histórico e culturaL
Autor: João Braga





Prefácio

por Flávio Chaves



“...Pois é dos sonhos dos homens/ que uma cidade se inventa...”. Com certeza, quando Carlos Pena Filho escreveu esses dois versos antológicos, em seu conhecido poema Guia Prático da Cidade do Recife, reflita sobre o fato de que o Recife nascera dentro do mar, graças à argamassa do sonho, que só se deixava limitar pela muralha de arrecifes, porque esta lhe era uma defesa natural. Mas refletia também, nas entrelinhas, que havia outro Recife, secreto, dormindo nas torres das igrejas, no modo dos homens, na arquitetura barroca da curvas das mulheres e em tantas outras formas não miscíveis à régua, mas sobretudo através dos sonhos dos homens.

Boa parte desse Recife foi redescoberto por homens de visão arguta como Joaquim Cardozo, João Cabral de Melo Neto, o próprio Carlos Pena Filho, Gilberto Freyre, Oliveira Lima, Mauro Mota, entre outros. Mas ainda há o que ser revelado. Foi pensando nisso que João Braga, após longo período de estudos, pesquisas, gastou-nos este TRILHAS DO RECIFE, na verdade um guia turístico, histórico e cultural, porém diferente do que se tem feito até então no gênero: mais didático e mais completo, revela alguns aspectos da cidade não conhecidos pelos recifenses, todos os pontos de lazer e cultura.

TRILHAS DO RECIFE é, sobretudo, uma fotografia da história arquitetônica da cidade. Não uma fotografia técnica, imaginada pelo olho humano, mas uma fotografia que capta detalhes que não percebemos, mas que, quando observados, se mostram vivos, pulsantes, reveladores de outra cidade que surge do Recife, como uma borboleta do casulo, secreta e mágica. São marcos que passam despercebidos como o vento aos nossos olhos, porém quando lemos o guia, contam-nos histórias; falam-nos de homens como Domingos Ferreira, Guilherme Aquino Fonseca, Cruz Cabugá e tantos outros cujas digitais estão marcadas em cada logradouro do Recife.

É sobre este aspecto do Recife que nos fala João Braga. Seu guia é uma série de reportagens colhidas em livros, periódicos, muitas em Jornais antigos, outras que registrou através de suas andanças investigativas pela cidade. Em cada uma delas, viu um Recife tingido de uma luz apenas bebida pelo espírito dos poetas, compositores, escritores e artistas, que são quem, verdadeiramente, vêem o mundo pousado em chamas, chagas e canções. Porém, a julgar por este trabalho, que tanto irá nos auxiliar alunos, professores, pesquisadores e turistas, podemos incluir João Braga nesse seleto grupo de pessoas que de olhos fechados vêem e sabem converter a simetria do sonho em paisagens vivas.

TRILHAS DO RECIFE mostra o lado avesso da cidade. Não o lado obscuro, visto por quem segue o Capibaribe e vê o quintal das casas, as palafitas, os bordados que a linha verde dos mangues insiste em fazer sobre o pano de trapo das águas. É um projeto de quem conhece a cidade, de quem aprendeu com os poetas e boêmios a decifrar o Recife no escuro, e por ele ama e morre.

Com o presente trabalho, João Braga traça o roteiro turístico-cultural do Recife em 25 “trilhas”. Cada uma delas mapeia a história da urbanização de um bairro e suas principais artérias por onde a sociedade passada. E, ao passar, não deixava apenas rastros, mas as marcas de uma história, as digitais de sonho construído com o decorrer dos séculos. Esses sonhos estão erguidos a partir de cada parede que nos dá pistas, através das linhas arquitetônicas, não só de determinados momentos e formas concebidas pelo espírito humano através da história, mas dos meandros da própria história, as correntes do pensamento humano.

O conjunto de todas essas trilhas representa em aspecto panorâmico da história do Recife. Uma cidade cuja história já foi contada por tantos aspectos, encontra aqui, nesse guia, mais meio de identificação, possivelmente não o último, mas um dos poucos que plenifica o espírito de conhecimento através de uma leitura que aproxima, ao mesmo tempo, o lirismo e o lazer, graças ao exaustivo trabalho de pesquisa do autor.

O Recife nasceu de uma colônia de pescadores que instalavam palhoças em uma pequena e estreita planície entre o Capibaribe e o mar num processo de aterro. Cresceu adubada pelo bagaço da cana que passou nos engenhos que foram moídos pelo tempo mas que também deram nomes a vários logradouros da cidade; são eles: Casa Forte, Monteiro, Torre, Apipucos, Engenho do Meio, Madalena entre outros. Vive a plenitude da transformação de uma época que começou com a chamada guerra aos mocambos deflagrada por Agamenon. Portanto, Trás traços de várias épocas, cultura de vários povos (o escravo, o índio, o português, o holandês, o mestiço) e eis porque o Recife é uma cidade contraditória e cheia de contrastes. Tão rica e tão pobre, tão feia e tão bela, um estado de espírito na pura acepção da palavra.

Com toda essa riqueza de detalhes, o Recife precisava ser retratado por quem compreendesse o universo da alma. É a isso que TRILHAS DO RECIFE se pretende. O manual é sobretudo um tratado modelado nos cânones da epopéia, que tem como legado a história, roteiro a cultura e objetivo o futuro. Nela, os mitos são homens que ousaram sonhar, por isso são imortalizados por seus valorosos feitos incontestes. Daí porque foi tão oportuna a publicação, na página 175, de um texto poema, de Paulo Fernando Craveiro, para ilustrar a vida do português filho de inglês, Henry Koster, que escolheu o Recife para morrer, mas que continua vivo, através das páginas de seu livro Viagem ao Nordeste:

O Recife procura
Seu silêncio
Na voz dos mortos
E outros cantam
Canções de ninar.



PONTUAÇÃO EM HISTÓRIA ORAL

Alberto Lins Caldas

A pontuação (“colocação dos sinais ortográficos na escrita; sistema de sinais gráficos que indicam, na escrita, pausas na linguagem oral”) é a aproximação ao oral, ao dito, atuando no texto no sentido dele, isto é, para realizá-lo, não para formatá-lo. A pontuação não é equivalente à textualização (Meihy, 1991), que inicia com a

“... anulação da voz do ‘entrevistador’, dando espaço para a fala do narrador. (...) Consta desta tarefa a reorganização do discurso, obedecendo à estruturação requerida para o texto escrito. Através das palavras-chave estabelece-se o corpus, isto é, a soma de assuntos que constituem o argumento. Faz parte do momento da textualização, a rearticulação da entrevista de maneira a fazê-la compreensível, literariamente agradável. Nesta fase anula-se a voz do entrevistador e passa-se à supressão das perguntas e sua incorporação no discurso do depoente.” (1991: 30)

Permanece, do conceito de textualização, quando existir “perguntas”, “anulação da voz do entrevistador”, mas não é anulação completa ou gratuita, mas inclusão na dialogicidade do texto quando isso for pertinente e exigido por essa mesma dialogicidade, tema ou narratividade.

O “desaparecimento” do entrevistador é inclusão dialógica, não sumiço, não corte aleatório ou “estilístico”, não é simples mergulho na fala do outro. As possíveis perguntas não somem por imperiosidade das modas, mas por, naquele momento de inclusão, fazer parte da narrativa.

Para se garantir a narração viva do “colaborador” é preciso que uma das vozes em diálogo (a entrevista não é ato técnico, mas vasto diálogo em busca do outro, de si mesmo, do nosso presente e daquele presente que não nos pertence) seja “devorada” hermenêuticamente pela outra, realçando-a, trazendo-lhe a “força original”, a “força virtual” da sua existência, experiência e sentido.

A “reestruturação requerida para o texto escrito”, própria da História Oral de Meihy não faz parte da perspectiva da cápsula narrativa nem da pontuação (muito menos a ação dos historiadores orais), que é um processo intermitente de busca do outro e instauração de negatividades. A pontuação enquanto uma “textualização suave” é necessária não por questões estilísticas ou por se “destinar a um público leitor”: a pontuação é feita por exigência do rigor hermenêutico da reflexão sobre a fala-texto do outro: a pontuação obedece ao respeito ao dizer e ao ser do colaborador: sua vida (suas virtualidades específicas), sua fala, sua existência, sua temporalidade, sua ordem narrativa, é ficcional e ficcional será também aquilo que a dirá “integralmente”, não perdendo de vista que as “falas dos outros” não nos exime de nos pôr e de interpretar, ao contrário, exige essa interpretação e essa tomada de posição: as falas do outro por si mesmas não são suficientes (assim como não é suficiente uma entrevista apenas): mesmo não se misturando à nossa, exige a reflexão: sua dialogicidade pede complemento, pois tanto a dele quanto a nossa são, de determinado momento em diante, contrafaces de um mesmo e grande texto, de uma mesma e complexa realidade.

Num texto em busca do outro se deve ter o espaço das entrevistas integrais, mas não podemos deixar de fora a nossa própria voz, nossa reflexão sobre o outro, que em sua existência textual chama nossa interferência não somente como “autor” do texto, mas, principalmente, enquanto o outro do diálogo. Mas não podemos esquecer que um dos papéis do oralista é o de não aceitar o texto, mas criticá-lo e interpretá-lo até que ele se abra e projete suas múltiplas entradas e caminhos, suas sombras, manhas, hipertextualidades.

Como dizer o outro, dimensão da oralidade do dizer, através da escrita? Como pontuar a fala? Como redimensionar a fala através do texto? Como dizer uma vida, uma experiência com a escrita? Como fazer dizer aquilo que some ao se dizer senão com a escrita? Como fazer com que a escrita não mate, não seque, não disseque a oralidade?

A instauração textual e a pontuação textual (a tradução do oral para o escrito, da transcrição ao texto final) não são exigências “literárias” (littera, letra do alfabeto, ou no português do século XVI, letradura enquanto ‘conhecimento da escrita’), fornecendo ao leitor um texto expurgado das “excrescências orais”. É exatamente essas “excrescências orais”, juntamente com a estrutura oral, com seus fluxos internos, com sua força ilocucionária, com sua forma de existência, que ensinará à escrita as trilhas a seguir.

A instauração do texto é uma conquistada através da modificação textual, que é, na verdade, aquilo que entendemos como a construção do texto, se dando a partir das exigências de sentido, estrutura e função do falado, dos fluxos e escolhas narrativas do nosso interlocutor. Não é uma dimensão exclusiva da escrita, mas é a escrita se deixando moldar por um dizer, por um viver, por uma ordem de dizer o vivido que pede para se dizer mais, com mais solidez, com a permanência que somente a escrita pode garantir.

Aquilo que coordenará a escrita não será a mentalidade gerada pela cultura escrita (Haveloch, 1996a, 1996b; Olson, 1997; Ong, 1998), mas uma escrita consciente tanto das suas dimensões quanto dos campos de força geradas por sua atuação. Buscaremos a escrita da oralidade e não simplesmente uma oralidade escrita ou transcrita, mas uma oralidade transcriada. O texto “final” é a oralidade transcriada.

A pontuação enquanto “textualização suave” (pontual) além de fundir ou excluir possíveis perguntas atua no sentido do texto se curvar à narração e dela se realizar no texto. Nunca ordenamento ou reordenamento estrutural, mas realmente uma pontuação: em “pontos” específicos atuar para que o oral se realize em texto e o texto plenifique-se em “oralidade escrita”: essa relação, essa dimensão ético-moral que se apresenta como cuidado epistemológico não tem regras, não pode ser ensinado: cada oralista na relação vital com o colaborador fundará o texto num processo compartilhado tendo como horizonte o respeito à experiência viva do colaborador.



Vencer é erguer pilares além do horizonte

Viver é uma arte difícil no eco da busca! Ouvem-se os lamentos dos fracos, dos que hibernam nos apegos enfadonhos do labirinto da vida. E não buscam alçar novos vôos, tampouco se importam com o crescimento individual, que traz o regozijo da alma e a satisfação interior. Não te preocupas não, olha para o alto.
Disse, certo dia, um velho marinheiro: na tempestade da vida só há uma coisa a fazer: colocar o navio em uma determinada posição e manter. Este é o segredo do sucesso. Ou seguir com o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar. E vestido de coragem desenfreada manter-se firme, constante. Porque em vindo o vento, a tempestade, os trovões, os raios, as ondas, os vagalhões, também podem vir até mesmo as rochas perigosas, mas nada será inabalável. O importante mesmo é atar ao leme, frustrar o impossível, romper as barreiras do impraticável e ultrapassar as camadas longínquas da desconfiança. Com perseverança, com intrepidez e ousadia atingir o imbatível.
Porque o intransponível da vida são os barcos que levamos nos olhos, navegando com o leme abrindo caminhos de sol e mares com um carteiro enlouquecido abrasado ao horizonte. E seu sorriso palpitante onde pulsa a certeza de que todos os dias do calendário são seus no incandescido pilar de vencedor.

Artigo publicado na Gazeta Pernambucana edição nº 34 de 02 a 08 de maio de 2008



A liturgia das rosas que falam

Flávio Chaves

Um dos gêneros mais apreciados pelo universo feminino, a crônica marcou época em nosso País. Poetas de primeira grandeza como Cecília Meireles também escreveram crônicas, atemporais, podemos dizer, porque o amor, sempre presente nas suas composições, é substância viva, errante e, como tal, apenas migra de um para outro coração, num processo de contínuas mudanças.

Não podemos esquecer que a crônica é um poema em prosa, segundo definição dada pela maioria dos escritores que dominam esse segmento da literatura, arte que se completa ao dar forma a outras espécies que se materializam pela palavra, como é o caso do teatro e do cinema.

As escritoras Laura Areias e Elizabeth Siqueira sempre brindando Pernambuco com o que há de melhor na literatura feminina do Estado, onde oferece uma antologia que reúne textos das melhores cronistas pernambucanas da atualidade, cujo poder criativo amadureceu em contato direto com as várias representações da nossa cultura.

Aliás, a presença da mulher pernambucana já era notável no tempo do Brasil Império. O pensamento político avançado e a intrepidez amalgamaram seu caráter, envolvendo-as com uma aura mítica ainda hoje presente no ato de dominar a escrita, como testemunho da herança cultural transmitida de geração a geração.

Mas a sua bravura podemos dizer que é inigualável, e assim sempre foi em várias ocasiões importantes, desde o tempo das Capitanias Hereditárias, de que são exemplo as heroínas de Tejucupapo; dona Olegarinha que, do seu casarão à beira do Capibaribe, na chamada Freguesia do Poço da Panela, facilitava a fuga dos escravos pelo rio; Ana Paes, senhora de engenho, em Casa Forte, à época do domínio holandês; Maria do Espírito Santo Arcoverde, a índia que salvou a vida de Jerônimo de Albuquerque (aqui chegado com o donatário Duarte Coelho Pereira) atingido por uma flechada dada por um índio e que, com ele, teve uma prole numerosa ainda hoje com descendente. Enfim, todas elas se transformaram em personagens da nossa História. Sem esquecer o pioneirismo de mulheres como Marthade Hollanda, a primeira pernambucana a votar.

A mestiçagem talhou o perfil feminino da pernambucana, adornando não apenas seus traços físicos, como deixando uma marca indelével em sua atividade intelectual e em seu espírito obstinado que sempre deseja fazer ou dar o melhor de si. Pernambuco é, de fato, um celeiro de boas profissionais liberais, de operárias, artesãs, artistas plásticas, poetas, cronistas, escritoras, todas elas, porém, não se descuram, jamais, do seu papel de guardiãs da família, a sentinela avançada da unidade brasileira.

(Artigo publicado no Caderno Viver do Diario de Pernambuco, em 21 de abril de 2008)



Audálio Alves – As múltiplas faces de um poeta

Flávio Chaves

Sem prejuízo da essência de seu lavor literário, tampouco do conteúdo ou de sua forma, podemos afirmar que não existe “a poesia do poeta Audálio Alves”, mas as poesias, porque ele soube dominar, como ninguém, não apenas um, mas vários gêneros ao manipular as múltiplas faces de sua criação, sem obedecer, certamente, a um período de transição entre uma e outra fase. Porém, há um aspecto que ao atento observador jamais poderá passar despercebido - o intimismo acompanhou o poeta em todo o percurso graças a sua sensibilidade, uma espécie de raio-x capaz de captar, a cada imagem que surgia, a matéria-prima de sua composição. E foram sempre as impressões primeiras que tatuaram seu peito. O que nos salta à vista é que nesse poeta intimista e, ao mesmo tempo, telúrico e instigante, não existe hiato nos vários estágios de sua composição, seja ela impregnada de metáforas, e até mesmo de indagações, ou social. Das sementes que ele recolhia cuidava de plantar suas idéias, com carinho e zelo, fixando-as com firmeza sob o solo cáustico que lhe serviu de berço. É evidente que cada verso desse poeta pernambucano representou, para ele instante de vibração, facilmente descoberto na leitura.

Para alguns estudiosos, ou entendidos, de Audálio Alves, sua poesia é constituída por versos livres e sem rima, o que não compromete o seguimento e a cadência – podemos dizer assim – de cada um deles. O uso da linguagem, pelo poeta, é como pinceladas sobre uma tela, impregnada pelo colorido das palavras, vasos comunicantes que se interagem e enriquecem a composição poética. Afinal de contas, a suavidade das pétalas de uma rosa é tão notável quanto o aroma que dela exala. O mesmo acontece com o poético e o ideológico desse poeta que está, sem dúvida alguma, entre os maiores da língua portuguesa. Sem resvalar para o popularesco, no poeta o gosto pelas expressões magicamente simples não se confunde, jamais, com a vulgaridade. A leveza de seu estilo comanda, com maestria a obra poética.

A moderna poesia muito deve a Audálio Alves, sendo ele, sem dúvida alguma, um de seus mais sólidos patamares, elevando-a à dimensão universal e eternizando-a em versos puros, cristalinos, elaborados por um esteta da palavra. De um artista que soube como ninguém refletir e até mesmo medir a grandiosidade da vida, do homem, da morte, emprestando aos textos poéticos uma dimensão universal, tendo no seu timão um comandante da palavra que, nas suas idas e vindas, consegue dar o seu recado ou, para sermos mais precisos, alcança a comunicação entre autor versus leitor em toda a sua plenitude, consciente de que este é seu verdadeiro papel.

POETA DO COTIDIANO

A vida com todo o seu esplendor é simples, como simples são as coisas que ela nos proporciona, o pôr e o nascer do sol, por exemplo. Sem custo e de uma forma intermitente. A beleza se repete em toda parte, no murmúrio das águas que escorrem entre as pedras, nos pássaros que cantam sobre as árvores, nos mares, na criança que empina papagaio, enfim, sob todas as formas.

O poeta não foi imune a essas manifestações, ao pulsar forte da vida, manifestada, inclusive, no seu cotidiano, ao lado da mulher e dos seis filhos. Detalhes de um cotidiano rico para quem é capaz de entendê-lo, de sentir o seu pulsar paras transmiti-lo através de seu canto:

Abre-se a toalha,
E a mesa se compõe
De minha companheira e cinco filhos
(que o sexto ainda não fala
e apenas sabe
querer os nossos braços e pousar)
Seguem-se os pratos e costume
e a fome
com seu garfo e sua faca
a divagar


Aliás, o cotidiano em Audálio Alves está presente em vários poemas de seu livro Canto da Matéria Viva, editado em 1970, pela Livraria Editora Cátedra Ltda., do Rio de Janeiro:

Virgínia,
Minha mulher,
parte todas as manhãs e realiza
enorme viagem,
sem sair de casa.
...
ao chegar à garagem
nos dias de inverno,
cuido do chão
para evitar insetos


Em todo esse trajeto de sua poesia, o autor se desnuda, não por inteiro, mas para deixar à mostra, outra vez, o seu lado intimista que se constitui, por certo, num bom condimento à leitura de sua obra.

Mas nesse dia-a-dia nem tudo são flores. O coração do poeta foi ferido pela lança e seu peito várias vezes tatuado, quando viu partir, um por um, amigos como Carlos Pena Filho, Cezário de Melo, Mauro Mota e tantos outros. E nessas ocasiões o cantar é o que resta da matéria morta, como aconteceu nos Quartetos da elegia quarta, na data comemorativa da morte do poeta Carlos Pena:

Maldito quem me lembre e quem te esqueça,
Amigo,
quando falo de amigo, quero vê-lo.
Insone tenho o polvo da memória


RAÍZES TELÚRICAS

O telúrico não poderia faltar na alma desse poeta cujas raízes, fincadas ao chão áspero da Região Nordestina, renascem nos seus textos poéticos, como um registro – quase metafísico - que se sobrepõe à matéria, liberto, porém, de chavões Os animais que distraíram não apenas os seus dias de menino, mas povoaram seu imaginário por todo o tempo, ora sob a forma de borboleta, ora sob a forma de coruja, ora sob a forma de cão, de galo, de pavão, do cavalo, passam a conquistar espaço na tessitura de seus versos, deixando transparecer indagações do tipo “não é uma ave...” Do mesmo modo que castanheiros, flores, plumas, rochas saídos da natureza.

Audálio não apenas desvenda paisagens interioranas, mas também da cidade que o acolheu, o Recife, com “seu quintal holandês”, quando chegou disposto a conquistar mais espaço num horizonte que parecia tão próximo e a lhe sorrir:

Poeta, mais civil,
da linha solitária do universo,
eu, Recife,
venho entregar
meu rosto a tuas sombras


Há na sua poesia, em determinados momentos, mais que o sabor da terra, que o romantismo, a sensualidade, presente, em dose maciça de latinidade, a latejar das veias do poeta, que soube beber tão bem na fonte da grande lírica ibérica, talvez, de uma forma sobremaneira atávica, para depois derramar sobre seus versos:

Beija-me,
como espinho de rosa mutilada.
Beija-me,
que não sei o que dizes...


Ainda com mais profundidade e intimismo:

...sobre o chão de teu corpo
perco vida
mas
das cinzas do teu ventre
ressuscito...


E é essa musicalidade natural que nos remete a outro tempo/espaço do sonho onde o amor que ficou pelo caminho ainda está e que leva à identificação entre o autor e o leitor.

POESIA DE PROTESTO

O fenômeno não aconteceu ou atingiu apenas os compositores brasileiros como Geraldo Vandré nos tempos difíceis da ditadura, mas também a poetas do viço de Audálio Alves, porque, nesse particular, nem toda a intelectualidade brasileira foi coesa. Não apenas como uma forma de protesto, mas sobretudo de falar baixinho, a cada coração, o poeta procura mostrar, aos brasileiros principalmente, como alinhar os primeiros fios do novelo que hoje chamamos cidadania por trazer na sua fórmula elementos embasados na justiça social, como o direito à vida, à liberdade, à habitação, num interminável rosário que, para ser perfeito, precisa ser cumprido pelas peças chave do sistema instalado em qualquer país, pouco importando o continente.

Nesse particular, os efeitos lingüísticos usados pelo poeta alcançam à meta desejada, qual seja, oposição, insurgência, rebeldia ao poder de força instalado num País chamado Brasil e quiçá em outras partes do mundo que de redondo, inteiriço, só tem a forma. Daí ter surgido o poema “Incêndio Civil”, em versos dirigidos ao estudante checo Jan Palach que usou o suicídio como instrumento de protesto, à época da invasão de seu país pelas forças soviéticas

... Morrias em Praça,
e em chamas:
muitos puderam ver
a pressa com que Deus se deslocava
nos extremos da carne iluminada...


Da mesma maneira o poeta lavrou seu protesto em versos com a morte do estudante pernambucano Demócrito de Souza Filho, no livro Canto Agrário, editado pela Fundarpe:

Quem, no Recife, chegar
à Praça da Independência,
ao ver o solo sem manchas
e o ar sem cicatriz,
não pergunte onde é que foi
o sacrifício do Homem.


Atento a todos os acontecimentos, à arguta percepção do poeta Audálio Alves também não escapou a luta racial dos Estados Unidos que provocou o homicídio do líder pacifista Luther King:

...Amigo, em teu país
Há lençóis de uma argila condenada...


Tendo a terra por seu pedestal e comprometido com a verdade, o poeta não perdeu a oportunidade de denunciar a estrutura feudal da propriedade agrária brasileira, atuando sua poesia, neste caso, não apenas como uma forma de exteriorização de um protesto, tampouco um simples registro, mas como testemunho, como memória, de um tempo conturbado da vida nacional.

Embora o silêncio muitas vezes seja mais forte do que mil palavras, a linguagem metafórica do poeta, nos anos 1963/1986, nos idos conturbados que o Brasil atravessou, por mais de duas décadas, teve, sem dúvida alguma, a dimensão da eternidade:

Mantenho a punhos fechados
o quanto posso
de espaço
recolher com as mãos abertas


Mais adiante:

...Talvez saltando de aceiro,
dedo e dente
assim trincados
leve o futuro na mão...


É nessa terra “grávida dos ventos” que ele, o poeta, descobre que o dia está no chão,onde os flagelados da seca – uma página que turva a rica história do Nordeste – constituem, na visão de Auddálio Alves, uma rude aparição:

... Flagelados dizem-se
e,ao dizer, se vão da vista
nossa
como rude aparição
Confundidos ficaremos,
se, após passarem eles,
não passar o burro e o cão...


Enfim, para o poeta, se mudanças acontecerem estão teriam de ser radicais:

...Faze de bronze o homem de
amanhã
de ouro, as foices
e de aço essa visão do tempo
inicial
Só assim terei meus mortos sossegados...


Só assim estaria restabelecida a paisagem onde nas curvas se escondem as covas das crianças mortas pela fome no canavial. E aí temos novamente a presença poética de Audálio Alves comprometido com o social, sem perder de vista o seu intimismo ou a riqueza de suas metáforas.



A força é do povo

Quando criança, ouvia meu pai sentenciar que um país se iniciaria. Fortaleza, filho, a siga os livros como quem vasculha o destino. Deixou-me aos três anos com esse testamento. Ensinou que o homem não põe a vida a leilão; não rouba o amanhecer do outro a nem se separa do seu sonho. É preciso colocar na agenda a seriedade com que se devem enfrentar os problemas no caminho. Instituir modelos que constituem motivo de esperança. E saber que as grandes cenas nebulosas fazem parte do dramático jogo humano.

Sou feito de esperança. Não ousaria dizer o mais crédulo. Força suficiente para estender a fé até o amanhecer. Não apenas creio em milagres, como dele sou um mirante permanente. Basta-me olhar para a própria vida a os seus dias. Ou os revelados pelas religiões. Por aqueles que tanto sofrem a ainda espalham que a vida é possível. Que a solução do seu problema está com quem você se une para resolvê-lo. Por mais difícil que the possa parecer.

Apesar dos fatos da incredulidade, que têm atingido em cheio a nação brasileira ultimamente, não me atormenta em nada, ao contrário, agita-me a devolve-me ao tempo de estudante quando me confesso pronto para it às ruas, sacudir bandeiras de resistência a disposto ao discurso de redirecionamento da nação. Demonstro continuar crendo no "milagre brasileiro", não no do regime ditatorial, mas na justiça construída a feita por todos a para todos, diferentemente, deste palanque que hoje está aí montado coberto com uma lona enlameada de corrupção e o país clamando por punição.

Igualmente ao "Estatuto do Homem" escrito pelo grande poeta Thiago de Melo, quando ele nos diz que: "0 homem deve acreditar no homem, como uma criança acredita em outra criança." Daí eu creio na ternura de uma gente que caminha com força a chama, num povo que trilha inflamado a clama pelo seu sonho a sua esperança. E assim já podemos vislumbrar um tempo de clareza a autenticidade.



Fliporto: o evento do ano

No princípio apenas uma colônia de pescadores onde desembarcavam os escravos trazidos do outro lado do mundo, do continente africano, a praia de Porto de Galinhas, no município de Ipojuca, litoral sul de Pernambuco, hoje famoso balneário, é palco, pela terceira vez, de um evento anual cuja repercussão lá fora garantiu-lhe uma posição de foro mundial da literatura. Reporto-me ao Fliporto, na terceira edição, Festa Internacional de Literatura de Porto de Galinhas, agora com novo formato e resultado da parceria do Instituto Maximiano Campos e a agência de publicidade Publikimagem, unidos com o propósito de promover cada vez mais nosso estado além fronteiras.
Essa idéia já seria suficiente para firmar o mérito de uma promoção voltada para um dos aspectos mais importantes da vida humana, e por que não dizer indispensável ao desenvolvimento integral das pessoas, cujo gosto pela cultura, pela literatura em seus vários gêneros, deve começar nos primeiros anos da escola. A promoção não se descurou desse aspecto e avançou na área das crianças, criando um programa paralelo, destinado ao público infantil e aos teenagers, o Fliportinho, que vem sendo anunciado, com bastante antecedência, por uma "Trupe Literária", nas escolas daquele município.
Não podemos esquecer, neste momento, que Pernambuco tem tradição como berço de homens de letras, pertencentes a diferentes gerações, a partir de personalidades da estirpe de Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Oliveira Lima, historiador Mário Sette, Nelson Saldanha, Mauro Mota, e tantos outros que fogem à memória neste instante. Tampouco o desempenho do escritor Antônio Campos que, como curador geral da Fliporto, tem demonstrado total interesse em desenvolver um trabalho de alto nível mantendo viva a chama da cultura pernambucana.
No passado, o gosto pelas letras era manifestado só nas rodas boêmias que chegaram a criar, no Recife, uma "academia ateniense" nas mesas de um bar no Parque Treze de Maio, local onde todos deveriam estar presentes no final da tarde, sem tempo para terminar areunião regada a chope. Também em saraus promovidos nos lares após o jantar, com a leitura de capítulos dos livros dos escritores e poetas mais famosos da época e recitais de canto e piano. Destaque para os intelectuais que se juntaram e fundaram instituições que não se curvaram aos modismos dos novos tempos e, como um carvalho gigante, até hoje funcionam. Os exemplos são vários, mas citamos apenas dois, a Academia Brasileira de Letras e a Academia Pernambucana de Letras.
Sabemos que naquele tempo os pais estimulavam nos filhos o gosto pela leitura e as bibliotecas dos colégios distribuíam livros para que os alunos se distraíssem nos finais de semana. Depois o progresso acendeu nas pessoas um novo prazer, representado pelos programas de TV e que, nas últimas décadas, invadiram as casas, tendo como grande aliada a internet que tomou conta de tudo. Mas, sem sermos saudosistas, sabemos que uma boa leitura é insubstituível e que o livro, esse impresso mágico, jamais poderá ser extinto. E, tal e qual as ondas domar que obedecem ao vaivém empurradas pelo vento, também nós somos despertados de novo para o imensurável território das letras, das palavras escritas à mão ou impressas.
Panorâmica - A programação da Fliporto comportou excelente recheio representado pelo concurso de poesia e vídeo, lançamento de quatro antologias, dentre elas Panorâmica do Conto em Pernambuco, organizada por Antônio Campos e Cyl Galindo, um concurso literário para alunos do ensino médio, tendo como prêmio a publicação de um livro, sem esquecer o recital dos poetas Marcus Accioly e Edson Nery da Fonseca, considerado o maior conhecedor da obra de Gilberto Freyre. Haverá também o lançamento de livros de autores nacionais, pela Editora Francachela, dentre eles Maria de Lourdes Hortas, Cyl Galindo, Abdias Moura e Humberto França.
Dez Mandamentos - Ainda durante a Festa Internacional de Literatura, o autor do famoso poema Os dez mandamentos - ele próprio um dos símbolos da resistência à ditadura -, o poeta Thiago de Mello tem presença confirmada na Fliporto, da mesma maneira que a escritora Nélida Piñon, primeira mulher a dirigir a Academia Brasileira de Letras, e que participará dos debates.
Reverência - Será reverenciada a memória de grandes personalidades, dentre elas o escritor e dramaturgo pernambucano Hermilo Borba Filho, a escritora chilena Prêmio Nobel de Literatura de 1945, Gabriela Mistral, a pintora mexicana Frida Kahlo, a escritora ucraniana Clarice Lispector, que morou no Recife, o editor paulista José Olympio pelo incentivo às letras, o general Abreu e Lima, que lutou ao lado de Simon Bolívar pela redenção dos países da América Latina.



Um abraço e primavera

Manhã sob um céu celebrado de claridade. Cercada por um templo tríbio: a vida, o universo e a morte. Tem se de um lado 0 cemitério de Santo Amaro, do outro uma praça, mal cuidada, cujo nome é lindo: Praça do Campo Santo, onde está localizada a Delegacia de Defesa da Mulher. Em derredor de tudo, algum verde a árvores que ainda restam. Lindas crianças de escolas públicas, representantes de órgãos a entidades não governamentais a pessoas curiosas com o que acontece.
Realiza-se a grande visita à árvore baobá ali plantada. Bárbara idéia bem concebida a lembrada, aplausos verdes cantam borboletas estreladas nas pétalas de lembranças selvagens, na luta pela preservação do meio ambiente. Sentida a grande tradução a gesto por seu conteúdo a mais: mostrar a necessidade do ver, além de revelar que ali também simboliza a força e a garra da beleza da mulher.
Impressionante a iniciativa a todos sempre a afirmar que fazem parte da criação. A paisagem cantava a tocava uma partitura soprada pela ventania dos abraços. Amorosamente uma alvorada silvestre abre se no sonho transparente das flores que todos os dias acordam para a essência. Dando a maior da vida: a solidariedade.
Hora de também plantá-la. 0 homem está desamparado vivendo a sofreguidão da falta de ar. Dos abraços perdidos nas esquinas famintas de uma cidade desesperada, sera endereço no planeta. As mãos espalmadas perdidas pelo longelíneo de uma aldeia de corações dilacerados. É tempo de apurar 0 olfato a distinguir a fragrância do sentido da vida. Emocionar se é preciso.
A cena trouxe uma analogia interessante, no momento dos olhares dirigidos à planta com suas folhas verdes, cada um queria participar colocando um pouco de sua crença no humano a depois abraços, sorrisos,gritos das crianças, enfim felicidade completa. Quando os olhares se levantaram para o alto muro branco do cemitério, a cena era outra a não precisa descrevê la. A morte é a sentença do destino de todos. Não importa a estação Uma cama em pedra é o endereço certo.
Como uma sombra de Baobá em luz que na África representa a árvore da vida, a força do encanto de toda a humanidade. No Recife, projeta se um despojado, na praça em frente ao Palácio do Campo das Princesas, que pede socorro para que, no dia 19 de junho de 2007, o "Dia do Baobá" possa ainda estar emprestando sua beleza ao Recife.
Esta espécie era cantada no Brasil pelo poeta pernambucano, o imortal João Cabral de Mello Neto: Um baobá no Recife. "Recife. Campos das Princesas. Lá com um baobá crescido em frente das janelas do governador que sempre há. Aqui, mais feliz, pode ter úmidos que ignora o Sahel; dá se em copulas folhas verdes que dão nossas sombras de mel. Faz de jaqueiras, cajazeiras, se preciso, de catedral; faz de mangueiras, faz da sombra que adoça nosso litoral. Na parte nobre do Recife onde seu rebento pegou, vive, ignorado do Recife, de quem vai ver governador Destes nenhum pensou (se o viu) que na África ele é cemitério: se no tronco Jesse baobá enterrasse os poetas de perto, criaria, ao alcance do ouvido, senado sem voto e discreto: onde o sim valesse silêncio, e o não, sussurrar de ossos secos."
Entro nessa luta pela preservação do baobá convocando os grandes valores da verdadeira cultura pernambucana: Nelson Saldanha, Raimundo Carrero, Marcus Accyolli, Arthur Carvalho, Fernando Monteiro, Evaldo Coutinho, Lucila Nogueira, Débora Brennand, Lourdes Sarmento, Marco Polo, Alberto Cunha Melo, Mário Helio, Lourdes Hortas, Luzilá Gonçalves, Ariano Suassuna, Jacy Bezerra, Frederico Pernambucano, Almir Castro Barros, Edson Nery da Fonseca, Antonio Correia, Ariadne Quintela, Teresa Tenório, Laura Areias, Waldemar Lopes, Dirceu Rabelo, entre outros para mapear o conteúdo do verde na villa da esperança.



O calendário e o tempo

Um novo ano acontece, um novo dia amanhece e é sempre oportuno trilhar novos passos. Neles decidimos quais serão os nossos caminhos e destinos a alcançar. Conheceremos novas pessoas, cujas essências estarão conosco todos os dias. Nessa estrada haverá a felicidade, que faz parte da vida daqueles que tem amigos, porque ter amigos é ser feliz. A felicidade nos permite acreditar que ontem foi passado, amanhã é futuro e hoje é uma dádiva, por isso é chamado presente. E quem aprende sorrindo é feliz duas vezes.
A felicidade é mãe de tudo, é casada com o tempo, porque só o tempo reconstrói corações, cura machucados a vence a tristeza. Assim nasceram a amizade, a sabedoria e o amor. Este ano será marcado por um calendário incandescente a terno.
A amizade é pura, doce, sincera, alegre e une como o sol, mas sem nunca ferir. A sabedoria, culta, integra, verdadeira sempre apegada ao tempo. 0 amor, ah! Esse dá trabalho, é teimoso, às vezes decide encantar apenas o coração. 0 amor foi feito para unir dois corações a não se infiltrar apenas em um. Mas o amor é belo, quando começa a fazes estragos é preciso vir o tempo, para fechar todas as feridas que o amor abriu, mas tudo no final sempre dá certo. E se ainda não deu, é porque não chegou a final.
E importante sabermos que somos estrangeiros neste mundo e que nosso grande objetivo é sermos felizes, afina] já dizia Gibran, que é poeta, que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isso perrnanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte a me leve pare a minha pátria, mas não deixarei, nunca, de ter no coração a amizade, a sabedoria e o amor, cujo tempo, espelho no meu rosto, reflete meu desejo de viver.
Sou um homem que caminha pelas ruas da cidade, cujo tempo é poema do meu viver, sou um homem de um tempo tríbio - o mesmo de Gilberto Freyre, e que guarda no peito a alma da eternidade, o sangue divino e o pulsar das alegrias a das respostas esquecidas. Afinal a noite só se acende quando a lua se incandesce e o dia desaparece com o sol a lhe dar as costas.
Por isso, 2007 é um recomeçar de felicidade, de amor, de sabedoria, que o tempo nos presenteia e nos fez conduzir pelos caminhos da esperança, porque até "mesmo as noites totalmente sem estrelas podem anunciar o amanhecer de uma grande realização", como disse Martin Luther King.
Vislumbro as horas e os sinos, o despencar das chuvas e o perfume das rosas que envolvem o corpo de um nova dia, repleto de esperança e beleza do amanhecer - colheita infinita de sonhos que acreditam em um novo ano e na certeza do nescer de um novo dia.



O espelho da ficção brasileira

Como não se pode fazer história imediata, nem existe uma crítica com espaços e ânimos disponíveis e suficientes para analisar fundamente e enquadrar esteticamente, dentro de padrões, delimitações de tendências, estabelecimento de zonas e fontes de influências. Toda a multiplicidade, variedade de ficção que se produz e edita hoje e se tem mostrado nos últimos 25 anos no Brasil.

Reina uma dispersão, aparente anarquia, flutuação, inidentificação corrosiva, prejudicial, pantanosa, que uma crítica impressionista e rara ou infreqüente, não sistemática, capta (fisga), comenta com resultado nem sempre criticamente aproveitável.

Essa nebulosidade que paira sobre a ficção (especialmente a nova e novíssima) brasileira pode comprometer (e fatalmente vai fazê-lo) o futuro de nossa prosa ficcional, e, na próxima década, sentiremos o impacto do prejuízo, inevitavelmente doloroso e inopcional, ou tragicamente irrecuperável, se não tivermos o devido conhecimento ou consciência do processo atual e dos caminhos de desenvolvimento de nossa ficção.

Faz-se necessário e urgente iniciar o processo de discussão e apuração (no sentido de depurar, extrair a ganga, filtrar, ordenar, cartesianamente, purificar), de classificação e tipificação (mas nunca pasteurização ou equivalente), de ordenamento e manualização (inclusive para fins didáticos) de toda a extensa e intensa gama de ficção brasileira contemporânea, que se produz e se publica (ou não) em muitos dos Estados da Federação.

A centúria do momento é fundante para o moderno romance brasileiro, cujas raízes estão lançadas na segunda metade do século XIX, especialmente no romance de costumes de Manuel Antônio de Almeida e Aluízio de Azevedo (o melhor do gênero, no século XIX, em que à aparência de análise psicológica se contrapunha alto senso de realidade, ou seja, era o gênero de novela de costumes mais naturalistas do que psicológicos).

Na trindade máxima do romance: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro concorrem todas as possíveis e as possivelmente imagináveis escolas ou tendências de prosa literária.

Entre os precursores, pode-se citar, por razões históricas, o romântico de expressão lírica, José de Alencar e Alfredo de Taunay (naturalista, de costumes).

Se as raízes, os alicerces, as bases estão nos fins do século XIX, o romance moderno do Brasil está, desde a origem, do plasma original à fase madura, adulta, definido, que pontificaram desde este período (e pontificam os nomes ou numes) tutelares (ou alicerçantes e construtores) de José Lins do Rego, Jorge Amado, José de Américo de Almeida, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Euclides da Cunha, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, Maximiano Campos, Arthur Carvalho, Raimundo Carrero, Gilvan Lemos, Fernando Monteiro, Otávio de Faria, Cristina Cavalcanti, Osman Lins, Assis Brasil e o candidato brasileiro ao Prêmio Nobel de Literatura, Heitor Cony.

Foi essa estirpe que influenciou (sem contar com influências externas, da América, Europa). O que deverá ser objeto de análise e discussão do próximo Congresso de Escritores, previsto para abril de 2005.








A palavra no cárcere



Li o artigo de Marco Aurélio de Alcântara, neste Diario de Pernambuco, caderno Opinião, sob o título “Prisioneiros de Consciência”, fruto de seu magistral talento de jornalista e escritor, versando sobre a coerção à Imprensa em Cuba, cujo trabalho, aliás, senti como se ele alinhavasse em seu texto a força do mar e da primavera, tão cantados na poesia de Neruda,

o tom de um grito e uma ação universal para a construção de uma alvorada na paisagem da ilha de Fidel que abra um túnel que dá liberdade ao tempo e espelho aos que estão nas masmorras castreanas, repressoras de sentimentos e palavras.

É de causar enleio a qualquer ser humano saber que em pleno século 21, momento de significativos avanços da tecnologia da informação, a maravilha das ilhas das Antilhas (Cuba) mantém em regime de reclusão, incomunicáveis. Centenas de presos políticos, economistas e jornalistas, dentre esses Raul Rivero, Oscar Espinosa, Marta Beatriz Roque, Edel Garcia, Juan Oliveira Castilho, Julio César Gálvez e Alejandro González Rega. Alguns seriamente doentes, precisando de tratamento de saúde. Quanto ao regime político de Cuba, não gostaria de entrar nesta seara, mas já conheço esse terreno minado pelos vinte anos de Ditadura que experienciamos no Brasil.

Aristóteles produziu uma definição clássica do papel da imprensa, quando disse: “Alguns poucos cidadãos adquirem o poder de fazer políticas públicas. Todos, porém, têm o direito de criticá-las.” O grande mote do discípulo de Platão foi o de tentar estabelecer com políticos e críticos da época, o diferencial entre poder (governo) e direito (crítico/Imprensa), embora todos estivessem fazendo parte da mesma sociedade. A filosofia da liberdade de expressão perdura até os dias de hoje, com raras exceções.

Lembro-me de duas situações diametralmente opostas de dois líderes, Thomas Jefferson e Lênin, que formularam regras básicas das sociedades que ajudaram a criar – os Estados Unidos e a União Soviética, respectivamente. Disse llych Lênin: “Por que deveríamos aceitar a liberdade de expressão e de Imprensa? Por que deveria um governo, que está fazendo e que acredita estar certo, permitir que o critiquem? Ele não aceitaria a oposição de armas letais. Mas idéias são muito mais fatais que armas.” No regime introduzido por Lênin a censura foi férrea e o silenciamento dos dissidentes, sistemático. Até livros escolares de história foram reescritos, jornais velhos foram reeditados e inimigos políticos eram retirados de fotografias. Quanto às crenças de Jafferson: “Uma vez que a base de nosso governo é a opinião do povo, nosso primeiro objetivo deveria ser mantê-la intacta. E, se coubesse a mim decidir se precisamos de um governo sem imprensa ou de uma imprensa sem governo, eu não hesitaria um momento em escolher a segunda.” Posições opostas de ambos os líderes políticos da época, mas traduzem marcas profundas, ainda hoje, nos editoriais dos grandes jornais.

Há pouco, procuraram introduzir ameaça à liberdade de Imprensa, pretendendo criar uma comissão que examinará a sua conduta, podendo cassar o registro de profissionais considerados inadequados. Um absurdo! Já vi filme parecido com este. Portanto, o segredo é não caminhar sozinho, porque o caminho se faz labirinto. E, sim, seguir de mãos dadas na multidão para tirar o rosto do silêncio e do escuro para confeccionar a claridade de um dia limpo. E, assim, Fidel e todo governante entenderão o que nos disse o poeta português Miguel Torga: “Dizer não na hora de todas as subserviências, ser verdadeiro na hora de todas as mentiras.”

A Associação da Imprensa de Pernambuco, através do seu Conselho de Direitos Humanos, solidariza-se com o ilustre jornalista em sua preocupação. Entusiasmada e determinada, vai verificar os meios diplomáticos, entidades afins e outros organismos de Anistia Internacional, para encaminhar documento assinado por todos ao governo de Cuba, solicitando providências no sentido da liberdade em Faz escuro, mas eu canto. E seguir também Ferreira Gullar, quando ele entoa numa cívica indignação: “A vida se perde ou se ganha com os demais, que o mais é pura perda.” Tudo pelo humano.



Ave, velho graça. A arte feito homem

Atribuiu-se ao caráter de vanguarda a várias correntes artístico-literárias iniciadas na Europa, no começo do século 20, lançadas através de manifestos, como o da literatura futurista de Marinetti, o da escultura, de Boccioni, o santeliano, dos arquitetos; (Sant´Elia), o manifesto do teatro sintético, o dos músicos e da arte dos ruídos, entre tantos outros. O objetivo era fazer tábula rasa do passado e construir, sob novas formas, o futuro. A extrapolação deveu-se a influências extracurriculares do industrialismo, que desejava impor formas e conteúdos às artes, especialmente à literatura. A impossibilidade absoluta era fazer da literatura universal, desde Homero até Machado, terra arrasada.

Na arte, em termos estritos, o século 19 fora apagado, deixando-se levar placidamente pelo figurativismo realista, sendo louvável e necessário o choque do cubismo. Na literatura, o surrealismo, o cubismo na poesia, foi crucial para acordar os poetas do sonho parnasiano ou do lodo degenerado do romantismo exacerbado, reinante na teia finissecular.

No início do século 20, com o modernismo, a prosa de ficção enfoca os vários problemas do homem moderno, que sofre as conseqüências da industrialização. A narrativa sofre transfor-mações (e deformações), tanto nas formas estéticas, quanto no conteúdo ideológico.

No cenário mundial, surgem ficcionistas, como Hemingway, John dos Passos, Faulkner, Pavese, Moravia, Steinbeck, que incursionam numa narrativa objetiva, representativa da realidade, mas sem os compromissos ideológicos do realismo socialista, segundo Lukács.

No Brasil, os reflexos dessa estética, chamada realismo crítico, que Bosi classifica de tensão crítica (em que inclui Graciliano) e tensão íntima (Otávio de Faria, Lúcio Cardoso e Autran Dourado) alcançaram escritores de uma surpreendente safra criativa.

A vanguarda literária brasileira, no campo da ficção, teve, entre os seus maiores representantes, os escritores nordestinos, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Jorge Amado, José Lins do Rego, Osman Lins, Hermilo Borba Filho, Rachel de Queiroz, entre outros.

Graciliano, político combativo, jornalista, humanista, tornou-se um narrador arquetípico, graças a um estilo ímpar, sem concessões. Firme em sua opção ideológica pelos oprimidos e pobres, pelos abandonados, buscou sempre expressar o tema da revolta, da exploração, da miséria, da exclusão social, como diríamos hoje, mas sem incidir no naturalismo ou realismo ingênuo, nem se entregar a utopias políticas, ou poetizar sobre a vida seca e dura que sentiu.

Graciliano viu, na pele, as estruturas opressivas, sabia da condição dos miseráveis, impregnou-se da angústia existencial causada pelo meio físico e hostil, acúleo e árido, e pelo sistema sociopolítico injusto e impiedoso e essa visão refletiu-se em suas narrações.

A mundividência humanística enraizada numa paisagem miserável, num clima politicamente árido, gerou romances tutelares como Infância, Vidas Secas, São Bernardo, Caetés e Angústia, obras-primas que, à imagem de Camus e Steinbeck, dariam certamente a Graciliano a láurea Nobel, se tivesse vivido e produzido mais. Johri Steinbeck, que viveu 60 anos como Graciliano, autor da obra-prima As Vinhas da Ira, refletiu nas suas narrações o drama dos miseráveis, expulsos da terra, perseguidos, desamparados.

Não há um estilo acabado, aparente, em Graciliano, na acepção de algo recorrente, em termos de arcabouço dos enredos e arquetipia das personagens, ou seja, o triunfo do estilo, ou sua marca indelével, como em tantos outros romancistas. Refletindo paisagem e estrutura sociais, como Jorge Amado, Graciliano é mais objetivo, conciso, direto, trazendo em riste uma visão dialética do mundo, do homem, da sociedade. Como narrador é geométrico, fratura!, anguloso e realista, embora necessaria-mente exempIar na criação e caracterização dos personagens. Segundo Bosi, a matriz de cada obra é uma ruptura, não uma continuidade. Ele compõe, não um ciclo romanesco, como Amado, mas um descontínuo de romances, em que cada obra prima e ímpar.

Com flashes, focos ou enfoques de momentos vivos e universais da natureza social do homem, Graciliano dá à luz narrativas díspares e superiores, como Caetés, Angústia, Vidas Secas. A paisagem – natural e humana – é captada, apanhada, não retratada ou filtrada, à base de recordações complacentes e langorosas do ângulo de um alpendre sertanejo ou do ponto de vista de um mourão no centro de curral plantado. É flagrada em tomadas ásperas, aparentemente improvisadas. A escrita de Graciliano Ramos guarda, mutatis mutandis, grandes analogias com a narrativa cinematográfica de Glauber Rocha.

Imerso na economia cabralina de meios e cifras de imagens, Graciliano adiantou-se à mais moderna ficção, foi precursor do ultramoderno romance francês. Angústia é romance existência-lista, de vanguarda, que fez escola e seguidores na literatura brasileira. Vidas Secas mostra a saga de uma família de retirantes, do vazio, da crueza do meio e do homem, tangida pela miséria e pelo mormaço, pela dureza do solo e solidez das nuvens, como em Vinhas da Ira, de Steinbeck. Em Vidas Secas, o narrador, ou o ponto de vista, é a natureza e o ambiente social hostis. O meio espinhoso, esgarçante, desagrega o narrador central e, da mesma forma que arrosta e arrasta os destinos inúteis e marcados dos personagens, arrasa, quebra, como gravetos, o fluxo e o eixo da história, antes centralizados na terceira pessoa. Essa inovação magistral e inédita, como assinala Bosi, é digna de gênio, do romancista que – se a morte tivesse permitido – alcançaria o pódio Nobel, certamente.

Em Vidas Secas, Graciliano Ramos excede-se, vai além do razoável e abeira o fundo do mistério criativo em ficção, aborda a perfeição, caminha com o inefável. A paisagem social e da natureza dão-se as mãos, celebram-se em conúbio realístico e tocante. Poucos romancistas tiveram a capacidade de representar mais expressivamente, com cor, clima e exatidão, seus personagens, criando um relevo quase físico na construção da fisionomia dos gestos e do ser do homem nordestinado. Paulo Honório, Baleia, Fabiano, o jovem Graciliano, de Infância, são figuras humanas, reais mas arquetípicas, nunca abstratas ou diáfanas.

Paradoxalmente, embora tenham certa identidade quanto à concepção do mundo, do homem, da sociedade, Graciliano e Jorge Amado situam-se em extremos opostos, como ficcionistas: enquanto o primeiro adere ao romance interior, introspectivo, o outro tem como característica a pura exteriorização com os personagens se derramando pelos sentidos, os poros abertos às realidades materiais, amorosas, violentas, eróticas, políticas.

Em Graciliano, as sensações têm significação psicológica. Porém na obra-prima de romance de valor universal, que é Vidas Secas, Graça, fiel à descontinuidade – o que dialeticamente significa criação permanente (ou permanente mudança) – e ao paradoxo, muda toda a estratégia e dá-nos uma narrativa seca, objetiva, econômica, de diálogos curtos e plenos de movimentos: uma forma magra, mas musculosa, diria Olívio Montenegro, sem o colorido cenográfico dos românticos.

Enfim, o nosso Dostoievski dos trópicos, como o chama Denis de Moraes, o sábio do sertão universal, vítima da ordem marcial, quando um estranho no ninho-presídio, que tantas vezes esteve a um passo do abismo (mas chegou ao paraíso), um marxista no mosteiro, esse seco Graciliano, abriu o coração aos homens, expôs mazelas e luzes, fez da escritura arte sagrada suprema. Ave, Velho Graça, a arte feito homem!


Edson Felino da palavra

“Édson, com toda sua mocidade, não é dos que torcem o nariz ao passado: sabe prezá-lo, compreendendo-o, sem renegar o seu tempo”. Essa avaliação de Mário Sette sobre Édson Nery da Fonseca mantém sua atualidade, e, se a ela acrescentarmos algumas medidas, tais como, entusiasmo de franciscano, paciência de beneditino, alma mística em corpo imponente, olhos de um azul holandês, servo dos livros, amante da literatura, tudo sob a égide de um férreo lastro moral e uma profunda e espontânea religiosidade, tanto espiritual quanto estética, obteremos o conceito do que seja o homem do século, o verdadeiro scholar, intelectual puro, sempre a serviço da razão e da emoção, em proporções humanas.

Um misto de mestre e aprendiz, de servo e senhor dos livros, de alguém sempre em estado de poesia, de solitário em tempo integral, habitante do espaço monacal e homem do século e das luzes do mundo, imerso nos rumores da vida, atento, tanto à lucidez quanto à desídia dos homens; um misto de dândi e cavaleiro, austero, fleumático, ágil e sólido, pistas conceituais de um eu raro, chamado Édson Nery da Fonseca.

Mas o traço supremo, quase absoluto, definidor das feições espirituais, das profundas nuances intelectuais, da austeridade ágil, da impaciente energia que circula nas veias humanas desse ser em estado de poesia, que é Édson, é a cal felina que vela sua alma, o timbre anímico que aprofunda seus olhos, a magia de seu espírito secular e supermoderno, sempre atualizando o futuro e cativando o passado com presentes que cristalizam a memória e a perpetuam: os livros, seus felinos de letras e símbolos, inestimáveis objetos de estimação.

O afeto ao espírito felino, a mordacidade azul, os gestos pacientes e agudos, meneios precisos, lances d’olhos cruciais da altura de um pensador sereno e profundo; auras mágicas e puras que o percorrem, independência e solidão consciente, imersão na vida real, personalidade como marca humana, cautela, astúcia, impassibilidade ante o trivial, o efêmero, o infra-humano; e habilidade e argúcia sobre-humanas, eis os traços de Édson Nery Felino da Fonseca.

Seguindo as escavações do espírito, em busca do rosto de um homem – aquele que Diógenes facilmente encontraria, cessando sua busca dramática em definitivo - sob as luzes de sua vida contínua, temos o que dele, de Édson Nery da Fonseca, disse um mestre, Gilberto Freyre: “Mestre dos Mestres, quer no País, quer na América Latina inteira, pois uma reputação internacional situa-o entre aqueles supertécnicos, tão artísticos quanto científicos.”

Do neto do velho Inácio Nery, disse Alessandra Simões: “Atualmente, Édson cultiva a complacência. Sua serenidade se escora na devoção a São Bento; e emendou Sanderson Negreiros: é um donatário do sonho, um homem com os pés fincados no solo duro da realidade – e transportado por sonhos, acresço – em místico entendimento com Cristo, mestre em todas as direções da vida.”

Mas dele, lapidarmente, esculpiu em palavras precisas o vice-reitor Geraldo Pereira, quando definiu: Édson é um asceta (além de esteta, presa dos livros, pastor de leituras, acrescento) acompanhando os rituais e as liturgias como se fosse um monge honorário.

O crítico Wilson Martins disparou: Édson é uma figura essencial no processo civilizatório brasileiro. Nery, digo eu, é uma civilização tropical, um ser continente cultural. Édson vai muito além da realidade, é um marco intemporal, uma alma elegante e pura como diamante; ele transcende os óbices mundanos, está além do meramente humano, mas a demasia não é sua medida; Édson transcende as coisas simplesmente terrenas: seu espírito desfila nas passarelas do infinito: nas regiões de sua alma profunda, o sopro de Deus se ouve, se sente a presença inefável e suprema do real verdadeiro, das primeiras e últimas fronteiras do ser, que Édson lapida e venera, com sua disciplina severa e metodologia humana.

O querido e já ido, mas sempre doído, irmão mais velho, Odilon Ribeiro Coutinho, um dos edsólogos mais perspicazes, embora fanático, afirmou ser “Edson Nery figura de intelectual privilegiada, acrescentando que poucos pensadores reúnem as qualidades e as virtudes morais e profissionais que nele se apuram e transbordam; é um intelectual raro, um homem exemplar, um grande escritor”.

Com essa citação-homenagem ao homem da palavra felina, ao antropobibliocêntrico, como o adjetivou fraternalmente Houaiss, e venerável Edson Nery da Fonseca, rendo minha admiração, apresento a gratidão da UBE pelo concurso de sua inteligência fulgurante e disponibilidade ímpar sempre a serviço da cultura de Pernambuco e do Brasil, e abraço, em nome dos escritores de Pernambuco ao nosso escritor maior e irmão perene e felino.


Pernambuco cultural

O Instituto Maximiano Campos surgiu verdadeiramente para ficar como um forte registro na cultura pernambucana. Ainda está na memória de todos a grande festa Natal do IMC, com as presenças de intelectuais de fora do estado como Ferreira Gullar, Antonio Carlos Secchin, George Moura. A multidão se comprimia nos corredores e jardins da instituição, num dos momentos mais representativos do que se faz da arte e literatura de Pernambuco.

Agora, o IMC promove a inauguração da praça e do auditório Maximiano Campos. Com a sua sensibilidade de artista e a força de um grande empreendedor, Antônio Campos tomou uma iniciativa que acompanha e completa a ação das secretarias de Cultura, quer do estado, quer do município: assinou convênio com uma grande editora do Sul, a Girafa, de Pedro Paulo Sena Madureira, para publicar livros reunidos de Alberto Cunha Melo, da Geração 65, cujo trabalho vem sendo bastante elogiado por professores, como Alfredo Bosi, e poetas, como Bruno Tolentino e Mário Hélio de Lima.

Como se não bastasse, convidou sete mulheres para lançarem seus livros nesse dia festivo, autoras entre as mais respeitadas em nossas letras: Lucila Nogueira (Desespero Blue), Tereza Tenório (A Casa que Dorme), Lourdes Sarmento (Guardiã das Horas), Janice Japiassu (A Paixão segundo Madalena) e Lenilde Freitas (Grãos na Eira). E na coordenação do evento, mais uma personalidade feminina: a jornalista e produtora cultural Teresa Costa Lima, incansável e dedicada em tudo o que realiza no Recife.

Dando seqüência ao resgate da obra inédita de Maximiano Campos, o IMC está entregando ao público mais dois livros: Do Amor e suas Loucuras e Os Cassacos, este último com apresentação de Raimundo Carrero. O primeiro reúne poemas inéditos de Maximiano à poesia já divulgada no CD Lavrador do Tempo.

Louvor a Antônio Campos, criando e ampliando em Pernambuco novos espaços de cultura, com a vitalidade do trabalho e a audácia do sonho, neste Recife de tantas luzes sobre o Capibaribe, de tanto sol no cais do porto, das lindas águas de Boa Viagem, de tanta poesia e tanta imaginação de seus habitantes. Louvor a todos aqueles que acreditam no valor supremo do amor ao amado, aos amigos, à cultura da terra onde se nasce e onde se vive de braços abertos para caminhar, através da arte com destino à felicidade.


O suor à face da palavra

A poesia é um mistério. Mesmo o crítico luso João Gaspar Simões, biógrafo de Fernando Pessoa, em seu ensaio, O Mistério da Poesia, não decifrou o mistério que sempre envolve a poesia, como se um manto a defendesse da vulgarização, mantendo os véus que a valorizam, desde Safo, Homero, Empédocles, Holderlin, Heráclito, Parmênides. Hermes poderia ser o seu patrono.

Uma soma algébrica de contradições, um dilema em que os pólos são equívocos. Uma massa de palavras em que, ao predomínio dos substantivos, opõe-se o protagonismo do adjetivo, e o verbo é a rede que separa o duelo de titãs entre as palavras, cujo vencedor é a poesia.

Mas o pódio cabe, nem à forma, nem ao conteúdo, mas ao poema que é a criação da palavra pela palavra, sendo o poeta apenas o oficiante dessa cópula ou o sumo sacerdote dessa religião da palavra.

Segundo Verlaine, a poesia busca o que há de íntimo em tudo, embora terrivelmente insípida seja a poesia subjetiva, o que obriga, poeta que se preze, a buscar o meio-termo, a proporção dourada entre o excesso e a falta, entre o conteúdo e a forma, entre a emoção é a razão.

Não é só ceder a iniciativa às palavras ou mecanicamente fazê-las serva do poeta, mas, na hesitação entre som e sentido, buscar a certeza do poema como artefato de palavras.

O conceito de poesia nunca será unívoco sob pena de não abrigá-la. Victor Hugo dizia que a poesia não está na forma das idéias, mas nas próprias idéias, ao passo que Mallarmé retorquia: poesia não se faz com idéias, mas com palavras.

Causaria espécie dizer que a prosa de Cem Anos de Solidão contém mais poesia do que milhares de livros de poemas, ou seja, a fôrma verso não é sinal da existência de poesia em um texto logicamente versificado.

Igual se aplica aos textos de prosa poética de Cervantes, Lampedusa, Marcel Proust, Carlos Nejar, Jorge Amado, Borges, entre outros.

Mas a forma pode ser o esplendor do conteúdo, bem como toda uma época literária pode ser, antes de mais nada, um momento da forma.

A arte moderna desdenhou a forma, afastou-se da realidade (que é a forma mais perfeita, a exemplo de uma mulher em carne e osso), embriagou-se de um poder criador e criou personagens geniais (a exemplo de Picasso e Dali), confundindo as coisas até hoje, cem anos depois.

Se Mallarmé, ao pronunciar a palavra flor, tenta colher "a ausente em todos os ramalhetes", ao escrevermos um poema devemos nos prevenir do excesso de realidade presente nas palavras, carga que devemos eliminar e que pode nos sufocar, ou, ao ver a árvore, não vermos a floresta, ou vice-versa.

Heidegger disse que fazer poesia é tarefa, dentre todas, a mais inocente, completando que, com a poesia, deu-se ao homem o mais perigoso dos bens, acrescentando que uma linguagem foi concedida ao homem para que dê testemunho do que ele é: quase divino.

Depois de dizer que ao poeta cabe fundar o mundo humano, estabelecer com as palavras os alicerces do que permanece, Heidegger conclui: está de parabéns o poeta, mas não por isso, porém pelo fato de a poesia ter feito desta terra sua morada, ou seja, a poesia é a morada do ser.

Uma das conceituações de poesia que me atrai é a de Pound: a intensidade e a emoção são os fundamentos da melhor poesia, cuja qualidade se reflete na voltagem, na alta-tensão das palavras no poema, ou seja, na quantidade de energia emotiva que encerre.

Com esse pensamento, Pound destruiu a ilusão ou o mito de que o poeta lírico devia morrer antes dos 30 anos, porque, à medida que envelhece, o poeta tem uma voltagem maior de energia emotiva e assim persegue a melhor poesia, com o passar dos anos.

Eis, então, os poemas de Samuel Vitalino, poeta jovem, agora no início do périplo literário que o levará às altas usinas onde se gera a poesia, a partir do elétron das palavras; eis, pois, um poeta em formação, em plena ação de aperfeiçoar o dizer lírico, um candidato à possessão do verbo poético, um peregrino dos mares onde singra o barco ébrio de Rimbaud; um jovem praticante do rito de iniciação nesse ofício quase divino, nessa tarefa que já foi reservada aos deuses ou aos demônios, no sentido grego da palavra: eis, portanto, alguém que busca a catarse, que arrosta as cruas águas do início para colher a flor frágil do ramalhete da poesia em serena baía, perto do amor.

Samuel enceta a luta literária, sabendo quanto é árduo lutar com palavras, conforme Drummond, e opta pela quantidade (como o volume das águas de cachoeiras partindo para encontrar a primavera), num pleito dialético, com vistas ao salto futuro que o premiará, compensará seu esforço cedo, com a acústica literária, cantos de navegação solitária, pódio a que poucos ascendem, mas, se o fazem, é porque gerou a usina que lhe fornecerá a tensão sonhada. E o combustível dessa turbina é o suor à face da palavra.

Templo da palavra


Para Jorge Luís Borges, o universo é uma biblioteca, os livros são civilizações, as prateleiras, altares, as pessoas são os servos dos livros, e o Bibliotecário-mor é Deus.

Essa metáfora borgesiana é exemplar quando nos coloca como servos dos livros, e o somos porque nos servimos deles. O que é lastimável é descuidarmos, desvalorizarmos, marginalizarmos o livro, como algo que só vale na emergência de um concurso ou um teste ou à medida de que nos forneça uma instrução técnica ou psicológica imprescindível.

Mais triste ainda é a discriminação inaceitável entre livros literários e técnicos, como se os segundos fossem razoavelmente aceitos pela "utilidade" e os de literatura, puro ócio de desocupado. A questão de utilidade vai muito além da emergência e guarda surpresas e potencialidades sem conta.

O conceito de biblioteca e de sua utilidade real deve ser ampliado e compartilhado por empresas e entidades civis, além dos governos, pois a contribuição econômico-social das bibliotecas dificilmente é mensurável em sua realidade.

Precisamos investir (e o investimento é mínimo para tamanho benefício) na melhoria da qualidade da biblioteca, especialmente no Interior do Estado. Quem sabe, criar um programa de adoção de bibliotecas? A primeira avaliação que se fizer desse projeto mostraria a amplitude dos benefícios.

Precisa ser mais sentido, mais absorvido e compreendido por todos, independentemente de posição social ou financeira que desfrute, o papel gerador de conhecimento e compreensão da vida, a função exponencial de difusão da cultura e de esclarecimento técnico, que desempenham as bibliotecas. Ela não só armazena, mas resguarda, disponibiliza, centraliza, integra o conhecimento guardado nos livros e assim permite a abertura ao leitor, atraindo-o e acomodando-o para que usufrua e se delicie com o saber posto à disposição.

As bibliotecas são como seres vivos: necessitam da seiva técnica e financeira que as faz crescer; precisam ampliar espaços e acervo, melhorar acomodações e técnicas de biblioteconomia, divulgar o serviço para aumentar o número e a qualidade dos leitores, medir sua satisfação, fazer com que o leitor volte e realmente usufrua da leitura, para que não se torne um mero turista no lugar. Precisam de ar e espaço, e de novas aquisições, de acordo com as mudanças de cenário e modo de ver o Mundo.

Nada mais triste que uma biblioteca esquecida, solitária, visitada por pessoas descontentes, com um acervo desatualizado, livros velhos, puídos: tal casa de livros é apenas uma miserável choça, desrespeitando o leitor.

Daí porque precisamos nos mobilizar, entidades, empresas, governos, para criar um programa (não de expansão agora) de atualização, revitalização das bibliotecas, a partir de uma pesquisa e de um projeto que possibilitem a sua revivescência de modo a atingir o objetivo real.

É preciso também disseminar a leitura (a visita à biblioteca) de idosos, crianças doentes, carentes, porque a ação terapêutica da leitura, em situações-limite, é patente. As bibliotecas maiores deveriam ter um serviço de apoio externo, de visitas a asilos, hospitais, prisões e locais de difícil acesso físico ou institucional, de modo a levar a possibilidade de leituras a pessoas que estão à margem.

Inventário da lembrança José Paulo Cavalcanti Filho apresenta uma pequena obra-prima: Aos Amigos, Tudo, coleção de versos de circunstância produzidos ao longo das amizades, alguns ditados pela saudade comungada com a celebração da vida. O libreto é um inventário de poemas marcados pela técnica dos cantadores (de que Zé Paulo é apologista hors concurs), pela espirituosidade do tema ditado pelo acaso e pela deliciosa coragem de tornar públicas suas afeições e reconhecimento. A vida e a ação de Zé Paulo se enquadram exatamente na sentença passada em julgado mundial de André Malraux: "Há homens-ilha, que são isolacionistas e também homens-continente (José Paulo), que crescem dentro da sociedade".


Ilusão do cadafalso


Mais uma vez fica evidenciado na prática, que a defensoria do povo brasileiro não é o corpo institucional formal, exclusivo no trato de amparar e defender os direitos da população brasileira e sim a imprensa – o rádio, o jornal/revista, televisão e outros elementos da mídia, a imprensa brasileira, principalmente a TV, pela sua credibilidade alcançada, vem liderando a identificação e cobertura de diversos fatos, principalmente o mais recente e gigantesco esquema de desvio da riqueza pública, função do próprio distintivo áudio/vídeo, na órbita pública, em todo o país, fazendo com que a ação da polícia venha a reboque dos meios, não sei se por inaptidão ou estratégia. Tudo acontece às quatro paredes, o oportunismo petulante, a pirataria, tráficos de influência, tráfico de ilusão e demência em ouvir o próximo – o eterno fingidor, impunidade, extorsão, pouco ou quase nada resulta em punições aos verdadeiros culpados.

Agora, quando episódios dessa ordem aparecem e eclodem através da mídia e rumam desde as moradas das choupanas até os mais imponentes paços, abalam os alicerces de estruturas políticas, inquietam mandatários ilustres de instituições e provocam arritmia em corações de muitos astutos homens envolvidos em processos sórdidos, com a imagem política já comprometida, mesmo assim, tenta demonstrar pseuda preocupação com os bens públicos, construindo discursos e apologias inconsistentes frente à verdade óbvia. Não é fechando o ferrolho de uma porta que se impede a passagem de uma vida feita de sonhos e coragem. A prepotência do poder o leva a ter a atitude desumana porque o ser desejado para assumir tal cargo da estratosfera do poder não comunga ou fere a sua comunhão de tempo desigual as emoções sentidas de velhos momentos. Isto fere qualquer princípio ético que venha a ser escrita um dia a carta em defesa da humanidade e do planeta.

O jornalismo verdadeiro não é simplesmente a transmissão de notícia. É procurar a verdade dos fatos, contá-la e transmitir a opinião de seu transmissor. Hoje, a tecnologia da informação tem contribuído, significativamente, com a mídia, como se não bastasse sua competência e experiência de seus profissionais, analisando fatos dignos de registro, filtrando o que é mais importante para a opinião pública. Graças ao crescimento e maturidade do povo brasileiro, hoje nós temos um processo de comunicação democrático, autêntico, forte, respeitável, tão influente, que possibilita reflexão, fazendo com que cada um ajuíze e ressalte aquilo que é coerente ou não, segundo o seu próprio ponto de vista.

É dever imediato da imprensa, trabalhar por uma ordem justa na sociedade, acompanhar as variações sociais, legislativas, administrativa e cultural – sendo todas destinadas a promover orgânica e institucionalmente o bem comum, base de toda política.

Neste contexto, a política de Nova York colocou em prática uma máxima: uma pequena corrupção é que daria lugar à tolerância zero. O ato de quebrar uma vidraça com uma pedra não pode ser tolerado. No momento em que se aceitam essas pequenas coisas, ficamos cegos para a grande corrupção e violência. Segundo o jurista Gilberto Kujawski o combate à corrupção precisa ser cotidiano, e assim por diante. Afinal, como disse Roy Disney: Quando um tem os seus valores claros, tomar decisões se torna mais fácil.

Por fim, fica-nos o dever de constituir um opus proprium àquela cujo espírito corresponde a prática da verdade e cujo objetivo é a sociedade. Não adianta vender ilusão. A vida tem que ser feita de práxis e de coragem. De trabalho e obstinação. Hastei-se a bandeira da liberdade, fraternidade e igualdade.


Lucilo, Apl e obras raras


O mercado editorial de Pernambuco vive um novo entusiasmo, que tem origem no crescimento das vendas e no surgimento de novos autores. No entanto, o mais importante desse cenário é a reedição de obras raras, que há muito tempo não estavam disponíveis. Hoje as reedições, além de atualização lingüística, vêm em boa qualidade gráfica.

Não diferente, a Academia Pernambucana de Letras vem erguendo a bandeira da preservação dos valores literários sugerindo a publicação de novos autores, fomentando prêmios e agora brinda com a reedição de obras do século XIX. Organizada, com denodo e dedicação, pelo poeta e acadêmico Lucilo Varejão Filho daquela casa, e anuncia, com louvor, a edição dos livros Os velhos mestres do romance pernambucano. A coleção, quando concluída, terá recuperado a memória de 18 obras de oito autores pernambucanos.

Relembrando o seu tempo de infância, quando buscava nas prateleiras de sua casa, em Olinda, os livros do pai, Lucilo Filho viu ao assumir uma cadeira na APL, que boa parte dos livros de seu pai era de acadêmicos e que as obras não estavam mais disponíveis ao público, daí alimentou durante anos a idéia de reeditar algumas obras, que só agora foi possível graças à Lei de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura. Lucilo Filho conta que quando conseguiu reunir os originais, e fez o projeto, o MinC o considerou de alto interesse, porém lhe atribuiu a tarefa de captar os recursos necessários.

Engavetado por mais de dois anos o projeto só agora pôde sair do papel, graças ao entusiasmo de Dilton da Conti que patrocinou pela Chesf, no final de 2005, permitindo a publicação dos quatro primeiros volumes. Nesta empreitada editorial, o organizador contou com a colaboração de Heloísa Arcoverde e de Antônio Farias, que se encarregaram da revisão, projeto gráfico e do relacionamento com Marcelo Maciel, da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), onde foram impressos os livros e a quem se deve a boa roupagem das obras.

Os quatro volumes já publicados são Passionário e Regina, de Theotônio Freire; A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela; O Claustro, de Manoel Arão e Morbus, de Faria Neves. A segunda fornada da coleção, com data prevista para os próximos dias, reunirá 13 obras, em cinco volumes, são elas: Romances rurais e Romances urbanos, de Mário Sette; Romances olindenses e Romances recifenses, de Lucilo Varejão; A rosa verde, de Nilo Pereira; e Inquietos, de Luís Delgado. Lucilo Varejão Filho portanto é um grande caçador de nossa memória de punho em riste para preservar nossa rica memória.

Vocabulário da lembrança


Costuma-se dizer que só existe, concreta e realmente o município, representando apenas ficções políticas os estados, compostos por um conjunto de municípios. Mais paradoxal ainda, no âmbito desse exercício de imaginação dinâmica, é afirmar que só existe a cidade, suas ruas e casas, e não o município, outra ficção política.

Digo isto, porque para mim só existe Carpina, cidade que vive em meus olhos, habita-me o coração, corre em minhas veias, e, como sangue ou esperança, pulsa e ergue-se, voltando-se ao futuro.

E é da esperança do futuro, da certeza de amanhãs que o homem se alimenta. Ilustra isso o aforismo de Bob Goddard: “lembre-se: quando você achar que tudo está perdido, o futuro ainda estará lá”.A última quimera brota no canteiro de uma varanda com flores na chuva.E o mar por testemunha.

Todos cantam sua terra, por isso canto a minha, não para fazê-la rainha, mas expressar a gratidão e o orgulho, que somente os carpinenses sentem. Não sei se é a trama do planalto ser hóspede solar, com as crianças apanhando a claridade num pomar de sonhos espalhados na vida das montanhas, o formato das ruas, a meiga imagem das praças, o rosto dos amigos, o sorriso carpinense, cuja excelência todos trazem na pulsação das veias, especialmente os que por lá passam... passam com extremo cuidado de escaparem da armadilha inefável, do encanto indizível, e conseguir sair a tempo e resistir ao canto e ao encanto de Carpina.

Carpina é um estado de espirito, uma civilização pequena, um local para sonhar e ser, um pretexto de eternidade.

É para lá que os bem-te-vis e as andorinhas de padre Mário Daorizzi, meu ex-professor de piano, vão açodados pela primavera, é lá que a luz, vinda do ventre do sol, chega aos olhos. É em Carpina que o olhar da vida repousa, antes de partir para abraçar novos horizontes, sem esquecer que os limites de Carpina são os de nossos corações.

É em Carpina – cidade - mãe e assim excelsa – que o berro que vem da bolsa de valores é trocado pela música que existe no choque entre consoantes e vogais, que dá música à poesia.Terra onde descobri a saudade.

De certa forma, escrevi Memorial da Distância – meu último livro vencedor do Prêmio Jornalista Eugênio Coimbra Júnior, do Conselho Municipal de Cultura, da cidade do Recife – como se estivesse nostálgico pelo fato de estar tão distante de Carpina, de viver em Recife. A poesia foi a forma de curtir a saudade e alcançar o perdão de Carpina, cidade onde o “carpe diem” é uma realidade, onde as seivas riem e os pássaros sempre chegam açodados pela primavera que mora no planalto.

É pensando lá que espero possamos plantar e esperar o safrejar, ter a certeza da messe, sem imolar as pedras no calo das mãos.

Nesse mundo conturbado e violento, em que os poderosos vão planejando o desenrolar da história, inventando guerras para homenagear a morte, emitindo decretos bélicos e disparando obuses, contribuindo para a expansão da miséria e do desperdício; para o trunfo da usura e do declínio, neste mundo perturbado, existe um éden, ainda em pé: a antiga Floresta dos Leões.

Nosso território do subterrâneo, vocabulário da aurora, firme serra do coração, catálogo de alegria, Carpina, bairro do porvir, mãe orgulhosa dos filhos que amam, honram, cantam incessantemente.

Carpina, com todas as letras, cidade sem sombra e sem medo, montanha em que coubessem todos os filhos, todos os homens, o alfa e o ômega, a paz e o amor.Terra onde se descobre que a alma é mais forte que o corpo e se perde o medo de ter medo.

A poesia francesa no Brasil

O escritor Milton Lins nos presenteia com mais uma brilhante tradução. Dessa vez, resultado de um trabalho de mais de dois anos, vem enriquecer uma bem-sucedida carreira de tradutor que Lins tem desenvolvido. Ao livro Rimbaud em metro e rima, cuidadosa e inusitada tradução da obra do poeta mais estudado fora da França, onde desenvolveu até 12 traduções dos seus poemas mais famosos, como Le Dormeur do Val, sucede Espólio Poético de André Chénier, 710 páginas, editado pelo próprio autor. André Chénier nasceu em Gálata (bairro de Istambul, Constantinopla, Bizâncio), em 30 de outubro de 1762. Seu pai era cônsul da França e desposara uma jovem grega. Nomeado para Salé em 1767, permaneceu 17 anos neste posto, deixando mulher e filho em Paris para que pudessem estudar em boas escolas. Tomou parte ativa nos primórdios da revolução, ao lado de Suard, de La Fayette, de Condorcet. Protestou contra os excessos revolucionários, retirou-se e mesmo se escondeu em Versailles - onde conheceu e amou Fanny de seus versos (Madame de Coulteux) - retornou a Paris no fim de 1793, foi preso em 7 de março de 1794, encarcerado em Saint Lazare, onde conheceu Madame de Coigny, a “jovem cativa”. Foi executado no 7 Termidor. Seus principais amigos, personagens de seus versos, foram os irmãos Trudaine, os irmãos de Pange e o marquês de Brazais. Lins foi garimpar conhecimento, inspiração e beleza nas gemas trabalhadas pelo talento de André Chénier. Ele valeu-se de bucólicas, elegias, epístolas, idílios, hinos e odes de Chénier para nos desvendar suas manifestações de entusiasmos das primeiras escaramuças de 1789, depois a contestação política aos excessos e violências da revolução, no período do Terror. Na maior parte de sua obra, Chénier utilizou versos de 12 sílabas com rimas emparelhadas. A poesia de Chénier não pertence a uma escola nem a uma época. Ela faz parte da poesia eterna. Eugène Manuel diz que “o encanto penetrante dos idílios e a graça elegante e viva das elegias não têm equivalência na França, nem antes nem depois de Chénier”. E o mesmo E. Manuel nele enxergou “o maior dos poetas clássicos desde Racine e o precursor dos mestres da poesia moderna”. Foi o autor que influenciou os poetas românticos da França do século seguinte. Sua obra completa vária é, infelizmente, inacabada. Não contava com a morte prematura que o levou aos 32 anos de idade, em 1794, graças ao combate à Revolução com seus panfletos, discursos e hinos. Milton Lins, médico cardiologista e professor da Univer-sidade Federal de Pernambuco e Universidade de Pernambuco, membro da União Brasileira de Escritores, da Academia de Artes e Letras do Nordeste, é natural do Cabo de Santo Agostinho e viveu a maior parte de sua vida no Recife. Vinha seguindo uma vertiginosa carreira na prosa, com a publicação de Prestação de Contos, de 1993, Recontando Histórias em 1996, O Sino Escarlate, com o qual ganhou o prêmio de ficção do ano na Academia Pernambucana de Letras, no mesmo ano. Em 1997, dois livros: Livro Preto, anotações de viagem, e ABC, contos. A partir de janeiro do mesmo ano, envereda pela árdua, mas gratificante trajetória da tradução, começando pela poesia rimada de Rimbaud, penúltimo livro de 1998. Traductore é traditore. Esta máxima latina da definição do ofício de tradutor certamente não se aplica a Milton, que procurou as palavras certas para transpor do francês ao português durante dois anos, auxiliado por sua esposa, Maria. Traduzir poesia é um trabalho de criação, de criação paralela. É recapturar o estado do autor quando escreveu aqueles versos, mesmo que vivido numa circunstância ulterior e submetida a outra atmosfera cultural. Processo empático, do tradutor com o autor a ser traduzido, implica, logo de início, encontrar equivalentes sonoros e conceituais, por meio de um perfeito domínio semântico de ambas as línguas. Isto, Lins exerce com maestria, nos obrigando a não nos furtar do comentário de ser um dos mais competentes tradutores da literatura francesa na atualidade. A língua francesa, graças à sua enorme tradição literária e artística, enriquece a formação de nossos escritores. E o surgimento, entre nós, de uma obra do quilate raríssimo de André Chénier, é uma epifania das letras, um estímulo à boa leitura, que alcançamos por meio do meticuloso e profissionalíssimo trabalho de Milton Lins. Como numa identificação completa, Milton pode dizer juntamente com os versos de seu traduzido: “J’ai su, pauve et content, savourer àlong traits lês muses, lês plaisirs, et l’étude et la paix. Eu soube desfrutar, pobre e contente, o mais: as musas, o prazer, a sapiência, a paz.”




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