Os defensores da liberdade na internet têm motivos para ficar alertas também no Brasil. O Marco Civil — uma proposta muito avançada de regulamentação da rede, apresentada pelo Executivo, durante o governo Lula — está tramitando no Congresso Nacional sob fortes pressões. Nesta quarta-feira (11/7), a Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa a proposta não votou o relatório do deputado Alexandre Molon (PT-RJ). Faltou quórum. E, embora tenha mantido, na essência, os pontos positivos da proposta, o próprio parlamentar recuou de uma posição importante. Ele aceitou as sugestões do ministério das Comunicações para diluir, em sua proposta, um dispositivo que assegurava a chamada “neutralidade da rede” — ou seja, a garantia de que não haverá, na internet, nem conteúdos privilegiados, nem relegados a segundo plano.
O projeto de Marco Civil é fruto de lutas sociais singulares e de uma articulação muito hábil com os poderes institucionais. Em 2009, o Brasil esteve a ponto de criar uma lei que estabelecia mecanismos de controle e censura sobre a internet. A pretexto de “combater a pedofilia”, um projeto do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) permitia eliminar conteúdos considerados “piratas” sem, sequer, decisão judicial. Foi chamado de “AI-5 digital” e rechaçado numa sequência de atos que reuniram ativistas e setores da esquerda institucional.
O presidente Lula abraçou a causa num ato simbólico. Em julho daquele ano, durante o 10º Fórum Internacional do Software Livre (FISL), ele assegurou que seu governo vetaria o projeto, caso aprovado no Legislativo. E aceitou uma proposta-chave da sociedade civil: o papel principal do Estado brasileiro deveria ser o de garantir direitos e liberdades na internet. As punições — obviamente necessárias, nos casos de atos criminosos — deveriam fazer uma parte do ordenamento jurídico sobre a internet, nunca o seu centro.
Esta diretriz resultou, após dois anos de estudos, na proposta do Marco Civil. Sua versão inicial foi formulada numa parceria entre o ministério da Justiça e a escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Inovou-se também na forma: o texto foi submetido a audiências públicas em diversas capitais e a um trabalho colaborativo. Por meio da plataforma e-Democracia, compilou-se opiniões de representantes de entidades e empresas ligada à rede, juristas, academicos e governo.
Ao contrário de inúmeras leis restritivas, aprovadas ou em debate em diversas parte do mundo, o Marco Civil (Projeto de Lei nº 2.126/11) é, em essência, libertário. Segundo Molon, “garante (…) a privacidade, pois o texto estipula que os dados privados não podem ser tratados como mercadoria sem a permissão do usuário (…) a liberdade de expressão (…) e a neutralidade da rede, o que significa que nenhuma empresa será beneficiada e que todas as informações que trafegam na internet devem ser tratadas da mesma forma, navegando com a mesma velocidade”.
Acuados, os conservadores procuram ganhar tempo e exploram contradições no governo. Seu alvo atual é o princípio de neutralidade. Nos últimos dias, parlamentares conservadores investiram contra um dispositivo, em especial, no relatório de Molon. O projeto admitia a possibilidade de exceções à neutralidade (para privilegiar, por exemplo, dados relativos a catástrofes e situações de emergência). Mas estabelecia que tais casos seriam definidos por um órgão democrático — o Comitê Gestor da Internet (CGI), de que participam técnicos, políticos profissionais e a sociedade civil.
As empresas de telecomunicação argumentaram que o CGI não faz parte da estrutura formal do Estado brasileiro. E parecem ter obtido apoio do ministério das Comunicações e da Casa Civil. O deputado Molon participou de uma bateria de reuniões com estes órgãos, nos últimos dias. Entre terça e quarta-feira, aceitou fazer uma pequena alteração em seu texto. Este passou a dizer, simplesmente, que as exceções à normalidade serão regulamentadas num momento futuro — “ouvido o CGI”… Mesmo assim, não houve votação. Apesar de contemplados pelo recuo do relator, os parlamentares conservadores optaram por postergar o debate no mínimo até o segundo semestre, quando haverá risco de novas postergações, devido ao esvaziamento do Congresso com as eleições municipais.
A concessão é pequena. Caso aprovado na redução atual, o Marco Civil será, certamente, uma das leis sobre internet mais avançadas do mundo. O que mais preocupa é o fato de os conservadores terem recorrido, com sucesso, a uma tática fartamente usada na Constituinte de 1986. Eles pressionam e fingem negociar. Arrancam concessões pontuais. Mas veem a primeira vitória apenas como alavanca para conseguir mais concessões.
Há chance de reagir a tempo. Mas é preciso atenção: a mídia comercial tentará esconder o debate. Será preciso acompanhar atentamente a tramitação do projeto, e agir muitas vezes, para evitar que o importantíssimo avanço obtido em 2009 escorra entre os dedos das mãos.
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