por magno martins -
O
meu tronco familiar está, aos poucos, fazendo a última e eterna viagem.
Há pouco, fiquei a chorar com a morte da tia Carminha, que cuidava dos
meus pais em Afogados da Ingazeira.
Perdi,
anteontem, no mesmo dia em que partiu o jornalista Joelmir Beting,
homenageado num lindo poema do filho Mauro, a minha tia Iracema, aos 94
anos. Diz o poeta que a saudade só floresce na ausência.
Tia
Iracema, irmão do meu pai Gastão, não era a Iracema dos lábios do mel,
mas a do encanto, de uma docilidade cativante, de uma sabedoria que não
colheu em bancos de faculdade, mas costurando roupas e a própria vida.
Era
uma grife na arte da costura, fina no trato, capaz de chorar diante da
beleza, reveladora de uma intimidade perfeita com o silêncio, de voz
mansa, irrepreensível na relação com os irmãos e a família, um brilho de
eternidade em seu olhar.
Há
quatro anos, conforme o registro acima, comemoramos os 90 anos dela,
que reuniu no Recife todos os seus irmãos, entre os quais meu pai e o
meu tio José Coió, avô de Yane Marques, a nossa festejada pentaatleta.
Tia
Iracema era eternamente dividida entre o Sertão, onde foi criada e o
mar, onde viveu praticamente toda a sua existência. Quando garoto, sua
casa no bairro do Cajueiro era a extensão da minha casa de infância em
Afogados da Ingazeira. Ela e o seu marido Júlio, de personalidade forte e
sem meias palavras, adoravam me receber em férias.
Para
tia Iracema, eu era o sobrinho predileto, o seu xodó e isso provocava
ciúmes. A lembrança mais forte que tenho do casal me vem de uma viagem
de Afogados da Ingazeira para o Recife num velho Dekavê, barulhento e
desconfortável, que fumaçava feito uma chaminé.
Era
dia chuvoso e “seu” Júlio, que costumava dirigir a 50 km – imagine o
tempo que levávamos para percorrer 386 km – inventou de parar no
acostamento e quase fomos jogados no precipício devido ao solo molhado
transformado em sabão. Acabamos guinchados por um trator. E por pouco
não perderia meus cajus.
O
passado é sempre uma gaiola. Tem momentos que a gente nunca se esquece
de desatar os nós que, no passado, amarramos para toda a eternidade.
Embora gostosa, a casa de tia Iracema, para mim, matuto do interior, era
uma gaiola. Dela só saia para retirar os cajus no quintal, comprar o
pão na padaria com “seu” Júlio e ir à Igreja.
Mas,
mesmo assim, aprendi com ela que para viver tem que ser sábio. E isso
não se consegue apenas com conhecimento, com a soma de conhecimentos.
“As universidades estão cheias de doutores idiotas”, dizia ela, com a
sua sabedoria adquirida com a soma da passagem do tempo.
Tinha
razão. Tia Iracema enxergava o mundo de forma diferente, era a
conselheira que meu pai buscava nas horas de dificuldades, o ombro
amigo, com quem dividia a dor, muitas vezes transformada em verdadeiros
poemas nos livros que meu pai deixa para as novas gerações sobre o
sertão, Afogados da Ingazeira e sua gente.
Fica
a lição da saudosa tia que a gente tem que aprender a passar por
metamorfoses. Hoje, depois de 22 dias só escrevendo sobre a saga ao
Sertão, onde retratei em capítulos intitulados “Reféns da seca” a maior
estiagem dos últimos 50 anos, minha vontade era de não escrever.
Mas,
não poderia deixar de prestar esta homenagem a um pedaço da minha vida.
Escrevi esta crônica como um sonâmbulo, na esperança, talvez, de que as
palavras consigam diminuir a minha dor.
Álvaro
de Campos dizia que na construção de palavras se houve outra voz, a voz
de uma melodia que faz chorar. Mas é preciso também ouvir as palavras
dos poetas, que nada sabem sobre outros mundos, mas sabem muito de
saudade:
“Saudade é o revés de um parto/ saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.
magno martins -
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