por João Ubaldo Ribeiro
Na semana passada, li um artigo do
professor Marco Antonio Villa, que não conheço pessoalmente, mostrando,
em última análise, como a era Lula está passando, ou até já passou quase
inteiramente, o que talvez venha a ser sublinhado pelos resultados das
eleições. Achei-o muito oportuno e
necessário, porque mostra algo que muita gente, inclusive os políticos
não comprometidos diretamente com o ex-presidente, já está observando há
algum tempo, mas ainda não juntou todos os indícios, nem traçou o
panorama completo.
O PT que nós conhecíamos, de princípios bem
definidos e inabaláveis e de uma postura ética quase santimonial,
constituindo uma identidade clara, acabou de desaparecer depois da
primeira posse do ex-presidente. Hoje sua identidade é a mesma de
qualquer dos outros partidos brasileiros, todos peças da mesma máquina
pervertida, sem perfil ideológico ou programático, declamando objetivos
vagos e fáceis, tais como “vamos cuidar da população carente”,
“investiremos em saneamento básico e saúde”, “levaremos educação a todos
os brasileiros” e outras banalidades genéricas, com as quais todo mundo
concorda sem nem pensar.
No terreno prático, a luta não é pelo bem
público, nem para efetivamente mudar coisa alguma, mas para chegar ao
poder pelo poder, não importando se com isso se incorre em traição a
ideais antes apregoados com fervor e se celebram acordos interesseiros e
indecentes.
A famosa governabilidade levou o PT,
capitaneado por seu líder, a alianças, acordos e práticas veementemente
condenadas e denunciadas por ele, antes de chegar ao poder. O “todo
mundo faz” passou a ser explicação e justificativa para atos ilegítimos,
ilegais ou indecorosos.
O presidente, à testa de uma votação
consagradora, não trouxe consigo a vontade de verdadeiramente realizar
as reformas de que todos sabemos que o Brasil precisa — e o PT ostentava
saber mais do que ninguém.
No entanto, cadê reforma tributária,
reforma política, reforma administrativa, cadê as antigas reformas de
base, enfim? O ex-presidente não foi levado ao poder por uma revolução,
mas num contexto democrático e teria de vencer sérios obstáculos para a
consecução dessas reformas.
Mas tais obstáculos sempre existem para
quem pretende mudanças e, afinal, foi para isso que muitos de seus
eleitores votaram nele.
O resultado logo se fez ver. Extinguiu-se a
chama inovadora do PT, sobrou o lulismo. Mas que é o lulismo? A que
corpo de ideias aderem aqueles que abraçam o lulismo? Que valores
prezam, que pretendem para o país, que programa ou filosofia de governo
abraçam, que bandeiras desfraldam além do Bolsa Família (de cujo
crescimento em número de beneficiados os governantes petistas se gabam,
quando o lógico seria que se envergonhassem, pois esse número devia
diminuir e não aumentar, se bolsa família realmente resolvesse alguma
coisa) e de outras ações pontuais e quase de improviso?
É forçoso concluir que o lulismo não tem
conteúdo, não é nada além do permanente empenho em manter o
ex-presidente numa posição de poder e influência. O lulismo é Lula, o
que ele fizer, o que quiser, o que preferir.
Isso não se sustenta, a não ser num regime
totalitário ou de culto à personalidade semirreligioso. No momento em
que o ex-presidente não for mais percebido como detentor de uma boa
chave para posições de prestígio, seu abandono será crescente, pois nem
mesmo implica renegar princípios ou ideais. Ele agora é político de um
partido como qualquer outro e, se deixou alguma marca na vida política
brasileira, esta terá sido, essencialmente, a tal “visão pragmática”,
que na verdade consiste em fazer praticamente qualquer negócio para se
sustentar no poder e que ele levou a extremos, principalmente
considerando as longínquas raízes éticas do PT. Para não falar nas
consequências do mensalão, cujo desenrolar ainda pode revelar muitas
surpresas.
O lulismo, não o hoje desfigurado petismo,
tem reagido, é natural. Os muitos que ainda se beneficiam dele
obviamente não querem abdicar do que conquistaram. Mas encontram
dificuldades em admitir que sua motivação é essa, fica meio chato. E não
vêm obtendo muito êxito em seus esforços, porque apoiar o lulismo
significa não apoiar nada, a não ser o próprio Lula e seu projeto
pessoal de continuar mandando e, juntamente com seu círculo de acólitos,
fazendo o que estiver de acordo com esse projeto.
Chegam mesmo à esquisita alegação de que há
um golpe em andamento, como se alguém estivesse sugerindo a deposição
da presidente Dilma. Que golpe? Um processo legítimo, conduzido dentro
dos limites institucionais?
Então foi golpe o impeachment de Collor e
haverá golpe sempre que um governante for legitimamente cassado? Os
alarmes de golpe, parecendo tirados de um jornal de trinta ou quarenta
anos atrás, são um pseudoargumento patético e até suspeito, mesmo porque
o ex-presidente não está ocupando nenhum cargo público.
É triste sair do poder, como se infere da
resistência renhida, obstinada e muitas vezes melancólica que seus
ocupantes opõem a deixar de exercê-lo. O poder político não é conferido
por resultados de pesquisas de popularidade; deve-se, em nosso caso
presente, aos resultados de eleições.
O lulismo talvez acredite possuir alguma
substância, mas os acontecimentos terminarão por evidenciar o oposto
dessa presunção voluntarista. Trata-se apenas de um homem — e de um
homem cujas prioridades parecem encerrar-se nele mesmo. Mas sua saída de
cena não deverá ser levada a cabo com resignação.
Ele insistirá e talvez ainda o vejamos
perder outra eleição em São Paulo. Não a do Haddad, que aparentemente já
perdeu. Mas a dele mesmo, depois que o mundo der mais algumas voltas e
ele quiser iniciar uma jornada de volta ao topo, com esse fito
candidatando-se à prefeitura de São Paulo.
fonte: oglobo/ João Ubaldo Ribeiro é escritor
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