sábado, 31 de março de 2012

As promessas e dívidas da privatização dos aeroportos argentinos

Uma investigação realizada pelo governo argentino, em 2007, revelou que a Aeropuertos Argentina 2000 violou “grosseiramente” suas obrigações com o Estado. A empresa devia então mais de 1,9 bilhões de pesos em impostos e incorreu em um “total descumprimento do plano de investimentos” acordado em 1998, quando ganhou a licitação, no governo Menem. O governo acabou perdoando essa dívida em troca da participação de 20% na exploração dos aeroportos.




Buenos Aires - O ex-presidente Carlos Menem assinou o decreto de necessidade e urgência (semelhante à medida provisória) para a privatização de 33 aeroportos argentinos de forma rápida. É que, antes, no dia 16 de agosto de 1997, cinco aviões com mil passageiros a bordo correram o risco de se chocarem ao serem desviados devido à espessa neblina que cobria o Aeroporto internacional de Ezeiza, em Buenos Aires. As explicações foram problemas humanos e falhas técnicas nas torres de controle encarregadas de solucionar a emergência. Insuficiente número de radares, atraso tecnológico, deficiente informação sobre tráfego aéreo e péssima assistência durante as emergências foram citadas pela APLA, a organização sindical de pilotos, como causas fundamentais da grave situação.

Assim registrou a imprensa da época os fatos que motivaram a imediata privatização dos aeroportos argentinos durante o governo de Carlos Menem. Um processo complexo, de idas e voltas, com elementos de corrupção que se viram obscurecidos pelos interesses do Governo e por medidas judiciais tomadas por deputados do bloco opositor que buscavam evitar a privatização. Coincidindo com o escândalo e a quase tragédia aérea e faltando poucas horas para receber uma sentença judicial contrária à privatização, Menem assinou, na noite da quarta-feira 27 de agosto de 1997, o decreto de licitação para a concessão dos aeroportos. Os sérios conflitos políticos-judiciais que o processo teve de atravessar ficaram para trás, embora isso não tenha evitado que surgissem dúvidas sobre a viabilidade do negócio e a lisura do processo.

O consórcio Aeroportos Argentina 2000, que obteve a licitação, estava integrado pelas empresas: SPA (da Itália, com 28% das participações), Ogden Corporation (dos EUA, com 28%), Simest (também da Itália, com 8%), Riva Construcciones (Argentina, 1%) e, por último, como sócio majoritário a Corporación América Sudamericana (do grupo econômico argentino Eurnekian com 35% do capital do consórcio).

O compromisso do consórcio foi realizar uma série de investimentos em todos os aeroportos sob sua gestão, de forma a melhorar as condições operacionais, de qualidade do serviço, eficiência, obras projetadas, etc. Segundo um relatório do economista Daniel Azpiazu, a aprovação oficial desses compromissos de investimento podiam ser flexibilizadas – para baixo – até concluído o terceiro ano da concessão e mais, como finalmente aconteceu, os investimentos comprometidos em valores não necessariamente guardavam relação alguma com o grau de deterioração dos aeroportos locais, ficando a juízo do concessionário – dentro de certos limites – para onde canalizar os investimentos comprometidos contratualmente.

Outra das condições essenciais para a concessão se relaciona com o montante da garantia a pagar pelo concessionário que resultasse ganhador da licitação. O montante proposto pela Aeroportos Argentinos 2000 resultou decisivo no momento da adjudicação, uma vez que se comprometeu em abonar uma garantia anual de 171,1 milhões de dólares, pagáveis semestralmente e ajustável com as taxas aeronáuticas dos Estados Unidos.

Segundo o estipulado, esse dinheiro deveria ser utilizado para operar e desenvolver os menores aeroportos do país. Nos 30 anos que durará a concessão (prorrogáveis por outros dez), o novo operador privado dos principais aeroportos do país investirá, segundo as exigências do edital licitatório, 2,228 bilhões de pesos e pagará a titulo de garantia 5,133 bilhões de pesos. Também se comprometeu em contribuir com um pacote de investimentos de 2,142 bilhões de dólares para os 33 aeroportos por transpor.

A aposta do grupo econômico previa um forte incremento do tráfego e da exploração comercial dos espaços aeroportuários para amortizar os investimentos e a garantia anual comprometidos. “Começou uma nova etapa”, sorria o presidente Menem.

Na realidade, o processo não foi tão auspicioso. Atrasos no cumprimento do plano de investimentos e essencialmente da concentração dos mesmos nos aeroportos de maior tráfego, fizeram duvidar do caminho escolhido, entretanto a problemática central tem relação com descumprimentos do consórcio no referente ao pagamento da garantia fixada no contrato de concessão.

Os argumentos esgrimidos pela empresa para negar-se a dito compromisso são vários. Trata-se, por exemplo, do atraso na transferência do aeroporto de Jujuy, ou certas demoras nos comércios habilitados em determinados terminais, ou a realização de obras não previstas de recuperação ambiental.

Neste sentido, o advogado do Consórcio Roberto Dromi afirmou, em sua oportunidade, que a Aeroportos Argentina 2000 “não vai pagar o que lhe é reclamado, porque o Estado está descumprindo o contrato”.

Um relatório elaborado em 2005 pela atual embaixadora argentina no Reino Unido e ex-deputada federal Alicia Castro, define a concessão da Aeroportos Argentina 2000 como um processo que se caracterizou pela carência de uma efetiva política regulatória, destacando a ausência de organismos de controle.

O documento estabelece a existência de garantias não pagas, investimentos comprometidos não realizados, multas ignoradas, evasão de impostos e encargos sociais, reclamações de usuários sem resposta, insegurança e má qualidade dos serviços, entre outros descumprimentos.

É importante assinalar que a concessionária Aeroportos Argentina 2000 é hoje o maior devedor do Estado, acumulando uma dívida de cerca de 800 milhões de dólares.

Os efeitos da crise de 2001 também afetaram o negócio. Uma vez destituído o governo de De La Rúa e com Duhalde no poder, as empresas privatizadas prestadoras de diversos serviços, entre eles aeroportos, sentiram os efeitos da mobilização social dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001. Segundo o livro “Crónica de uma sumisión anunciada”, de Daniel Azpiau e Martin Schorr, a evidente subordinação do governo Duhalde ao enorme poder dos lobbies das empresas prestadoras e de seus respectivos países de origem, de organismos como o FMI e dos principais grupos econômicos do país, este não pôde conceder os ajustes tarifários reclamados.

O estudo conclui que, apesar de originalmente a renegociação englobar múltiplos aspectos, a discussão terminou concentrando-se em quanto teriam que ser incrementadas as tarifas, mesmo que isso admita infringir boa parte da normativa vigente. Na maioria dos casos as empresas não puderam aumentar suas tarifas, mas como contrapartida, tampouco se encarou uma revisão integral dos contratos, tal como teria correspondido. Todas estas situações formam parte da pesada herança que o governo do Presidente Néstor Kirchner recebeu.

Durante a pós-desvalorização de 2002, a promulgação de Lei n° 25.561 que dispôs converter em pesos todas as obrigações pactuadas em dólares e, para os contratos celebrados pela administração pública, dispôs que as cláusulas de ajuste AA 2000 ficassem sem efeito, apesar de terem ocorrido descumprimentos tão graves que, segundo a Auditoria Geral da Nação (AGN), justificavam a caducidade do contrato (ao não ter pagado a garantia e não ter realizado os investimentos prometidos), a empresa chegou a um benéfico acordo com a gestão de Eduardo Duhalde, que fixou a dolarização das taxas aeronáuticas para os voos internacionais, desconhecendo decisões judiciais e a própria lei.

Apesar de dever boa parte da garantia, o convênio assinado flexibilizou o pagamento com base em uma porcentagem da receita da empresa. Também seus benefícios se viram potencializados pelo fato de que a garantia que deveria abonar ao Estado, foi convertida em pesos. Um dado importante é que o advogado do Consórcio durante as negociações foi Roberto Dromi, ex-ministro de Obras Públicas de Carlos Menem e principal arquiteto do modelo privatizador da década de 90. Também a companhia, como a maioria das privatizadas, se favoreceu com a pesificação assimétrica ao dar liquidez a seus passivos com o sistema financeiro local.

Corporação América
“Eu brigo nas licitações porque meus competidores não são crianças de colo. Meus competidores querem me destroçar e eu quero destroçá-los”, dizia o empresário argentino–armênio, Eduardo Eurnekian, presidente da Corporación América ao jornal Perfil, em março de 2007. De caráter veemente e eloquente em seu falar, Eurnekian é hoje o empresário mais poderoso do país e, desde os anos 80, um dos que esteve mais próximo do poder.

A Corporación América é um dos grupos econômicos que mais cresceram nos últimos anos. Eduardo Eurnekian, seu proprietário, soube estabelecer contatos fluídos com o poder político de turno para obter benefícios mais que vantajosos. As suspeitas de pressão, cooptação, extorsão, ameaça, tem sido comuns na construção de seu império.

Estimativas não oficiais dizem que o patrimônio de Eduardo Eurnekian supera um bilhão de dólares. Uma rápida olhada em seus principais ativos dá uma boa ideia do tamanho das operações do grupo.

A Corporación América aglutina empresas em diferentes ramos. O Grupo Eurnekian é dono da Aeropuertos Argentina 2000, American International Airports, Aeropuertos Carrasco, Servicios e Tecnología Aeropuertuarios, Shop Gallery (Duty Free Shop) e Duty Free Uruguay, ZVARNOTS (hub de tráfego aéreo da Armênia), Aeropuerto de Guayaquil, Caminos de América e Unitec Agro. Além do negócio vitivinícola com a Bodega del Fin del Mundo. Possui também interesses no negócio têxtil e foi o criador da operadora de cabo Cablevisión, hoje em mãos do Clarín. É também dono de três mil hectares na Armênia.

O jornal Página 12 de maio de 1997 já falava da aproximação de Eurnekian com os corredores e salas do poder. “Só para amigos da Rosada” é o título do artigo que resenha os privilégios de alguns empresários junto ao então presidente Menem. É em La Rioja, lugar de onde veio Menem, onde o seleto clube de investidores que, com muito pouco, instalam suas indústrias ou exploram terras inóspitas, para estar muito perto do Presidente da Nação, afirmava a reportagem.

Uma investigação da Unidade de Renegociação de Contratos (UNIREN) criada em 2007, pelo ministro do Planejamento Julio De Vido, revelou que a Aeropuertos Argentina 2000 violou “grosseiramente” suas obrigações com o Estado. Supostas modificações ilegais do edital de licitação para a privatização dos aeroportos teriam beneficiado a empresa Aeropuertos Argentina 2000. Omissão de controle do cumprimento das obrigações assumidas pela concessionária e autorizações indevidas a ela.

Segundo a investigação, a empresa deve mais de 1,9 bilhões de pesos por garantias não pagas e incorreu em um “total descumprimento do plano de investimentos” acordado em 1998 quando ganhou a licitação. Por esta razão, o governo acordou um novo convênio, perdoando a dívida que a empresa tinha com o fisco em troca da participação de 20% na exploração dos aeroportos. Na renegociação também se reduziu em quase 800 milhões de pesos o montante de dívida real da empresa controlada por Eduardo Eurnekian, se apaziguou o futuro plano de investimentos e se estabeleceu que o Estado seria o responsável por esses desembolsos.

No final de 2011 o Governo decidiu transformar umas obrigações negociáveis convertíveis em ações e assim é oficialmente proprietário de 15% do capital acionário da Aeropuertos Argentina 2000, a concessionária de 33 estações aeroportuárias no país. Dessa forma o governo será sócio da Corporación América, a empresa de Eduardo Eurnekian.

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