Difícil escrever na lápide de Chico Anysio. Ele não iria querer lamúrias. Nada como “pai amoroso, marido exemplar, homem honrado”. Ele pode ter sido tudo isso. Mas seria enfadonho demais. Sem graça. Chico não aprovaria.
Algo cômico, uma tirada espirituosa tem mais a ver, apesar de algumas caras feias acusando de desrespeito. Mas, neste momento, quem teria uma sacada das boas? E quem, por mais inspirado, que seja, ousaria? Diria: “Ah! Vou lá dar esta ideia. O pessoal vai gostar. Vamos homenageá-lo assim”.
Alguém? Alô!
Não. Ninguém. Responsabilidade demais. Melhor que ele mesmo se homenageie. Que citem frases do mestre: “Quem é casado há quarenta anos com dona Maria não entende de casamento, entende de dona Maria. De casamento entendo eu, que tive seis” ou “Claro que eu tenho depressão. Tive seis mulheres, nove filhos e dez netos. Se eu não tivesse depressão, teriam de me internar, porque eu seria um psicopata”.
Melhor ainda se deixarem as personagens falar por ele. Exibir um vídeo durante o velório com os melhores momentos do cara. Espantar a tristeza, fazer aquele povo todo de preto rir. Rir muito. Ele iria querer deste jeito.
Iria fazer gosto que seus filhos, não só os gerados por sêmen, mas também os gerados por cérebro e suor, estivessem lá, do lado. Que o Veio Zuza benzesse seu corpo, que Roberval Taylor narrasse o evento, que Salomé ligasse dando os sentimentos, que Haroldo assumisse para ele mesmo o que todos já sabem, se libertasse, fosse feliz, que Canavieira fizesse um discurso demagógico e fosse vaiado.
Podia ser assim. Cada um no enterro fantasiado como um dos que ele deu vida. Cada um como um dos mais de duzentos Chicos Anysios.
Chico não era o cara. Era os caras. Todos. As caras. Ou, ao menos, uma quantidade enorme deles e delas
Chico não era o cara. Era os caras. Todos. As caras. Ou, ao menos, uma quantidade enorme deles e delas. De nós. Pense em tipo humano que ele não tenha representado. Difícil encontrar. Deve ter, mas não vamos nos esforçar.
Para quê?
O resumo que ele fez já é de bom tamanho. Já abrangeu tudo aquilo que o ser humano tem de pior e melhor. Ele ia pescando cada alma do personagem, rebuscava, dava forma física, voz própria, trejeitos e cacoetes e, “Tomem aí! Mais um de vocês”, devia pensar.
Sua intenção era nos mostrar a cru. Era meio estereotipado sim. Meio exagerado. Demasiado até. Claro! O humor precisa dar mais cores, agigantar, evitar qualquer chance de escape.
Mas do aproveitador Bozó ao senil Popó, quem não se reconheceu aqui ou ali? Quem não se envergonhou ou sentiu vergonha alheia de algum conhecido? O vexame que traz o sorriso ou a gargalhada. Eram como somos quando a maquiagem começa a cair, quando o mise-en-scène abre espaço para a pegada real.
Era para que ríssemos dele rindo de nós, que enxergássemos nosso lado ridículo, que precisamos levá-lo a sério, valorizá-lo, não nos constranger tanto com nossas tabacudices, que Chico montou peça por peça do machista mal-amado Nazareno, do arrogante alienado Jovem, do mentiroso inseguro Pantaleão, do canastrão metido Alberto Roberto, do sem esperança ingênuo Coalhada, do assumido e sexualmente realizado Painho, do desgastado e resignado Professor Raimundo.
A mensagem: Ria mais, muito mais. Odeie menos, muito menos, até não odiar mais.
O humor moderno fica agora à mercê de uma guerrinha babaca de provocações. Pretensos desafiadores que ficam espetando os outros para provarem a si ser corajosos e contra o sistema. Quanto mais rebatidos, mais ofensivos. Humor do bate-rebate, feito para posar de invulnerável e não para conscientizar.
Tanta gente cheia de raiva, cheia de ruindade, que precisa ser caricaturizada, denunciada, e concentram a artilharia no favelado, na prostituta, no travesti. Em quem é mais fácil de bater, que fica sem ter como se defender.
Basta esperar que melhoremos. Que São Francisco ilumine. Que se veja ser possível rir sem maltratar, para que todos riam juntos, como nas noites de Chico City.
fonte:JC
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