- Hoje comemoramos uma data muito especial e eu pergunto a vocês, autoridades desta Casa: o que vocês fazem pelos direitos humanos? Qual a proposta que vocês têm para isso? Dizem que aqui é a Casa do povo. Pois eu digo diferente. Eu digo que aqui é a casa dos poderosos, do povo não é não. Poderosos que não fazem projetos para a comunidade, nem tão pouco para os excluídos.
Os alinhados deputados e convidados levantaram-se de suas poltronas e aplaudiram a mulher, que, pouco antes de seu discurso, havia sido barrada pelos seguranças porque tinha havaianas nos pés.
Cabelos cacheados, quase sempre amarrados para trás. Olhos escondidos por lentes de vidro. O visual lhe rendeu entre os amigos o apelido de Heloísa Helena, polêmica senadora alagoana. Postura agressiva de mulher guerreira, que se confunde com o sorriso fácil nos lábios e o abraço fraterno. O nome Lourivane Correia Teixeira é o que consta na identidade, porém todos a conhecem como Vânia, a líder comunitária da Favela Sururu de Capote.
A história da líder Vânia, 41 anos, se confunde com a trajetória da Sururu de Capote, que tem 26 anos de existência. Quando a comunidade aparecia nas páginas dos jornais, lá estava Vânia como a porta-voz de todos. “Eu sou a liderança dos excluídos. Sou a líder das pessoas das drogas, do alcoolismo, das prostitutas, do pessoal que vive na miséria. Para a sociedade, são pessoas sem vínculo, em decadência, mas para mim são pessoas guerreiras que têm histórias de vida”.
Sua chegada na comunidade Sururu de Capote foi aos 16 anos. Morava nas ruas quando soube pelos amigos que sem-teto armaram barracas de lona na margem da Lagoa Mundaú e construíram seus lares. Na época, nunca podia imaginar que um dia seria a responsável, a mãe, a “prefeita” de, aproximadamente, 1.600 famílias que lá se estabeleceram.
Infância: quem sou eu?
Antes da favela e das ruas, Vânia teve um lar. Uma família que ela desconfiava não ser a sua. Com pouca idade, não entendia porque sua pele era branca, já que mãe e irmãos eram negros. A dúvida aumentava devido à implicância e às constantes brigas com a irmã mais velha, que a acusava de roubar o amor e a atenção de todos. Em uma discussão de família, descobriu a verdade: fora adotada. A mãe biológica a abandonara nos primeiros dias de sua vida. Descobriu que havia partilhado o ventre daquela mulher com outra criança, um menino negro. Quando nasceram, o pai (branco) suspeitou que o menino não lhe pertencesse. Falava até que poderia ser do vizinho negro. A mãe, com raiva, entregou a filha branca como sinal de protesto pela desconfiança do marido.
Vânia, até hoje, não entendeu a atitude da mãe, o abandono e a mentira. Com oito anos, decidiu se desligar de um mundo que não tinha respostas. Aprendeu a cheirar cola para sonhar. Em um novo mundo, não havia brigas com os irmãos e dúvidas sobre, verdadeiramente, quem ela seria.
A maconha, a cola e outras substâncias tornaram-se companheiras, quando decidiu deixar a casa para morar nas ruas. “Vivia em um sonho, girando em um mundo que me perdia, que fugia”. Ainda na vida fantasiosa das drogas, Vânia engravidou de gêmeos. Ela tinha 13 anos quando os bebês nasceram prematuros e morreram na primeira semana de vida. Mas ainda teve outros doze filhos, nove do primeiro companheiro e três do segundo. Apenas cinco sobreviveram ao seu vício.
Vânia já morava na Sururu de Capote quando sua família de criação ganhou a guarda na Justiça de seu filho mais velho, Willames, hoje com 18 anos. “A Justiça viu que eu não tinha condições de criar meu filho. Vivia drogada e a Sururu era muito violenta. Tentei argumentar, falando que usava drogas, mas cuidava do meu filho. Olhe para ele, veja se ele está desnutrido? Eu cuido mais dele do que de mim”. Na época, elaa vendia drogas para alimentar o garoto.
Por isso, aos 18 anos, foi presa, acusada de tráfico. Nos seis meses na cadeia, não recebeu nenhuma visita. O choro e o tranquilizante eram as suas visitas oficiais. Após a reclusão, a saudade ainda bate, mas das companheiras de cela que ela deixou por lá. Do lado de fora, a vida continuava na favela, até que um dia...
...Seus problemas, nossos problemas...
Toda comunidade precisa ter um líder. A Sururu de Capote tinha o seu líder. Sua postura era controversa. Ele não morava em um barraco de lona como os demais. Não apoiava (muito menos ajudava) grande parte da comunidade, que era usuária de drogas. Certa vez, proibiu a entrega de cestas-básicas para um grupo de mães viciadas.
- Se ele não der, a gente toma que é direito nosso, desafiou Vânia, que estava no grupo das excluídas.
O grupo de cem mulheres invadiu a casa da liderança e roubou as cestas-básicas. Revoltado com a atitude das mulheres, o líder chamou um guarda municipal.
- A incentivadora foi essa aqui, disse ao guarda, apontando para Vânia.
- Sou incentivadora porque sou mãe e tenho filho para dar de comer. As cestas-básicas eram para pais e mães de família. Nós somos pais e mães de família. A gente pode ser viciado, mas a gente tem filhos. Eu tenho direito igual a qualquer mãe da favela.
Depois de garantir a cesta-básica para cada mãe viciada da favela, Vânia recebeu o convite.
- Ô Vânia, por que você não toma a liderança? Você tem estudo, sugeriu a amiga. Vânia tinha o segundo grau incompleto. Havia deixado a escola quando saiu de casa.
- Dá não porque eu uso drogas, eu sou sem futuro.
- Você entrando, a gente apóia.
E Vânia topou o desafio e caiu na real. “Não adianta eu ficar na fantasia, é melhor cair na real”. Quarenta mulheres apoiaram a líder, que não precisou disputar o cargo com ninguém já que o líder anterior abandonou a luta quando ganhou uma casa longe da favela.
A alimentação precária, principalmente para as crianças, foi o primeiro grito dos excluídos da comunidade Sururu de Capote. Lá não haviaa leite para a garotada, que crescia desnutrida. Vânia decidiu então apresentar a realidade para os representantes do poder público. Sem comida, sem água, sem luz, a líder, com seus discípulos, batia nas portas das secretarias estaduais. A Sururu contava com a voz de Vânia para que o mínimo de dignidade a homens, mulheres e crianças virasse realidade.
- Eu me sentia numa responsabilidade muito séria. Enquanto a gente não se olha no espelho, a gente não sabe de que forma a gente está e a gente não tem como se cuidar. Enquanto a gente tiver espelho, a gente não é mais invisível.
A luta travada contra a exclusão social de milhares de famílias batia no peito com a mesma intensidade da luta contra as drogas. Vânia deixou o vício com 26 anos, quando percebeu que não podia vencer a guerra de seu povo aliada ao seu verdadeiro inimigo. Os sintomas da abstinência ela “curava” com as batalhas do dia-a-dia na favela e com muito chá de camomila, indicado pelas amigas. Ir ao médico, raramente, quando obtinha vaga no atendimento público.
Mesmo livre da dependência, as drogas continuaram a fazer parte da vida de Vânia: crianças e adolescentes da Sururu de Capote eram dependentes e morriam por isso. “Quando me avisavam que uma pessoa ia morrer porque tinha dívida com traficante, eu tentava conversar, mas a lei da favela era simples: você consome, você tem que pagar. Se não, paga com a vida”. Então ela pedia mais tempo pela vida de garotos com 13, 15 anos de idade. Pagou dívidas de 40 e 50 reais. ”Mas, depois eles faziam outras dívidas e a lei da favela se cumpria”.
Embates
“Sururu na casca é capote quatro pimentas um prato feito um tapa na venta pra quem não comer direito” (Djavan).
Apimentada é a baixinha Vânia, principalmente em encontros inesperados no avião. Na primeira viagem nas nuvens, cujo destino era Brasília para mostrar ao povo de lá qual era a realidade do povo de cá, a passagem foi comprada por uma “vaquinha” da comunidade. Ao entrar no avião, a surpresa: sentou-se ao lado de uma figura política de Alagoas. O terço entrelaçado nas mãos e a feição de nervosismo chamou a atenção do político sentado ao seu lado.
- Por que você está tão nervosa?
- Porque estou sentada ao lado do pior pecador da terra. Esse avião vai cair.
- Como?
E a discussão só teve fim quando o político preferiu seguir viagem em outro assento. Mais uma vez, agora no aeroporto de Brasília, Vânia esbarrou com outra “personalidade”.
- Você que é a Vânia?, perguntou o senador alagoano Renan Calheiros.
- Sou sim.
- Diga uma coisa, como andam as obras do PAC em Alagoas? [Programa de Aceleração do Crescimento]
- Ouxi, me diga você, como andam as obras!?
Verdadeiro Sururu
Além dos “embates políticos”, a baixinha Vânia já estufou o peito e lançou palavras destemidas a policiais, o que gerou, na linguagem da comunidade, um verdadeiro “sururu”, sinônimo de confusão.
- Ah, você que é a Vânia?
- Sou eu sim, por quê?
- Você que é a líder dos traficantes?
- Sou a líder dos traficantes, das prostitutas e do pessoal que vive na miséria. E o que é que você quer?
- É que ontem mataram um cara aqui e a gente pergunta e ninguém diz nada.
- A obrigação é sua de investigar. A minha é de ser a liderança de quem precisa.
- Cuidado na sua vida.
- Ouxi, você ta me intimidando, é? Tenho medo de tu não.
Enquanto o policial levantava a voz e a mão na direção de Vânia, moradores interromperam a conversa e o sururu começou a fritar.
- Cooooooooorrrrreeeeeeeeeeeeeeeee, gritavam as crianças. Bombas de efeito moral e balas de borracha tomaram os barracos. Dia agitado na favela.
Mudança
Tudo começou com o projeto governamental de revitalização da orla lagunar. Para isso, prefeitura e governo do Estado decidiram retirar a comunidade Sururu de Capote, com seus pescadores e marisqueiras, da lagoa Mundaú. A promessa dos governantes seria um conjunto habitacional em um terreno de 55 mil metros quadrados com pavimentação e drenagem; implantação do sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário; eletrificação e iluminação pública. Além de creche, centro de saúde e centro de atividades múltiplas. As 1.480 casas seriam entregues para a Sururu de Capote e para outras quatro comunidades sem-teto da cidade.
Coube a Vânia registrar todos os barracos da Sururu para garantir a cada morador cadastrado uma residência no conjunto habitacional. A primeira reação da comunidade foi a negação. Temiam pelo desemprego, pois estariam longe da lagoa. “Muita gente não quis, mas quando souberam o que ia ter nessas casas, ficaram aperreados de felicidade com a garantia que teriam banheiro e cozinha”. Porém, Vânia enxergava além. Ela buscava a sonhada política pública para aquele povo.
No dia 20 de maio de 2009, a prefeitura de Maceió inaugurou o Conjunto Habitacional Cidade Sorriso I, localizado no Benedito Bentes, parte alta da cidade. Porém, apenas algumas promessas se concretizaram. Onde estariam as escolas, os postos de saúde, a área de lazer para as crianças? Só existiam casas, apenas casas.
No dia da inauguração teve festa política com a presença de representantes do governo federal. Discursos inflamados enganavam o povo deslumbrado com um pedaço de terra para chamar de seu.
Notícias nos jornais, após a inauguração do conjunto habitacional, mostravam que as comunidades ainda conviviam com antigos hábitos. “PM prende acusado de tráfico na Cidade Sorriso”. “População apedreja até a morte suspeito de assalto na Cidade Sorriso”. “Quatro são mortos na Cidade Sorriso”.
Na Cidade Sorriso
Para os alagoanos (como eu) que moram longe da comunidade, sururu é só no grito: suuuuruuuuuruuuu frescoooooooo. Sai da garganta da vendedora diretor para os lares dos distantes. Para os moradores da Sururu de Capote, é sinônimo de luta. Mas, “lutar por ser humano é muito complicado”, lembra Vânia. A comunidade Cidade Sorriso ainda tem o espírito da Sururu de Capote.
Vistas de longe, as casas da Cidade Sorriso parecem estar interligadas uma nas outras de tão juntas que sãoo. Cada casa guarda uma história de luta. De um morador que saiu de uma favela. Cinco favelas, agora, em uma só.
No dia da minha primeira visita à Cidade Sorriso, a líder da comunidade Sururu me recebeu de braços abertos. Apresentou a casa em que mora há dois anos, a qual não lhe pertencia. Vânia, após garantir a retirada da maioria das famílias dos barracos de lona, ainda não conquistou sua própria residência. A minha primeira pergunta foi: por quê? A primeira resposta foi: porque ela não quis. A segunda mostrou que a mudança para a Cidade Sorriso não mudou a líder Vânia, boa de luta. “Quando você fala para mim que eu era porta-voz da comunidade é porque sou referência para ela. Se eu tirar o meu barraco da favela Sururu, acabou a esperança para aqueles que continuaram lá. Eu não tiro o meu barraco enquanto o governo não tirar o resto da comunidade”. Aproximadamente 230 famílias permanecem na margem da lagoa.
A casa que abriga dez pessoas além de Vânia foi conquistada por seu atual companheiro, que se mudou com filhos, mãe e irmãos. Dois dos cinco filhos de Vânia moram com ela. Na porta da casa nova, Vânia conversa com uma amiga que também está desempregada. As duas são ex-presidiárias “sem comprovante de residência”, ou seja, não há vagas de emprego para elas. Vânia me conta sobre o projeto da Abrandh (Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos), organização não governamental que a contratou por um salário mínimo para, mensalmente, apresentar um diagnóstico da Cidade Sorriso. A entrevista mal começou e foi interrompida por uma amiga de Vânia que chegou em sua porta.
- A escola fechou, Vânia. Os meninos não vão ter lugar para estudar.
- Vamos ter que resolver isso!, respondeu a ainda líder daquele povo.
O diagnóstico apresentado, mensalmente, seria: não há escola suficiente para as crianças; não há emprego para os pescadores e para as marisqueiras que abandonaram a lagoa; não há médico no posto de saúde... A única realidade que não mudou foi a da luta de Vânia. E ela também é travada dentro de casa.
Everton Mikael, o filho mais velho, tem 14 anos e é usuário de drogas. Após a mudança para a Cidade Sorriso, o garoto parou de estudar porque não havia vaga na escola do bairro. A mãe tenta conversar e chamar-lhe a atenção, mas o passado com drogas de Vânia sempre é lembrado pelo filho. No momento, ele usa o tempo livre para brigar com outros meninos da comunidade. Como não há vaga na escola, Vânia, assim como várias mães da comunidade, perdeu o direito de receber o benefício Bolsa Família. “O meu filho já me perguntou da roupa de Natal, eu usava o Bolsa Família para comprar as roupas e a comida, agora eu não sei mais”.
Minha conversa com Vânia incomodou o seu atual companheiro, Juarez. Na verdade, a “líder comunitária Vânia” não agrada o marido. Vânia confessa que um dos seus sonhos é poder chegar em casa depois de uma guerra (guerra sim, porque lutar pelos direitos de um povo é uma guerra para ela) e encontrar um marido carinhoso que escute como foi o seu dia. Mas a realidade não é bem assim: “Fia da peste, onde você estava até essa hora?”.
Emo nosso segundo encontro, três dias depois, Vânia já não morava mais com o companheiro.
- Será que foi por causa da entrevista?
- A gente brigou feio naquele dia e eu decidi sair da casa dele. Na verdade, eu queria um tempo para analisar para saber se o que há entre a gente é verdade...
Vânia se mudou para a “casa de mãe”, uma casa na Cidade Sorriso que não é tão acolhedora quanto o nome sugere. O local está quase vazio. Poucas cadeiras e um fogão elétrico fazem a decoração da sala.
- É tipo fogão de presídio, conhece?
Eu não conhecia. A residência foi conquistada por uma moradora da Sururu e amiga de Vânia. Porém, quem mora lá é Elias, o amigo de infância da líder, mais conhecido como Goró, apelido que ganhou por não recusar uma bebidinha. Agora, Vânia e Goró cuidam um do outro. Ela cuida da bebida demasiada. Ele, do coração partido da amiga.
Vânia estava sofrendo. Isso era visível na sua conversa, em seu olhar. Parece que depois de todas as batalhas perdidas e vencidas pela Sururu, depois dos temores da infância, a desilusão amorosa é mais um tipo de sofrimento que ela precisa enfrentar. “Sofrimento é a melhor coisa da vida de qualquer ser humano. Se você viver só de amor, você nunca vai saber o que é crescer. Eu cresci porque a maioria da minha vida foi só sofrimento”.
* Kassia Nobre dos Santos - Jornalista pós-graduanda
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