sábado, 16 de julho de 2011

A SUBSERVIÊNCIA E SUAS DIVISÕES


A primeira das nossas subserviências é ao tempo. A última moda, uma vez instalada, adquire a consistência dos ditames milenares. Quanto ao passado, retém-se apenas o que houve ou possa ainda haver nele de repetitivo. Assim como o último cacoete se torna dono da situação, uma cólica do passado passa a comandar as nossas vidas. Chamemo-la, pois, de subserviência temporal.
A segunda das nossas subserviências, que se entronca na primeira, é a subserviência antológica. Um soneto cretino do passado, ou uma modinha da mais baixa categoria, agarra-se vigorosamente à nossa sólida memória nacional – aliás, memória sem memória –, como remos presos às costas dos condenados às galés, sem que possamos nos desvencilhar de semelhante feitiçaria. Um poeta brasileiro, que um dia cismou de cantar as pombas, está hoje sentenciado, por toda a eternidade, pela maldição de jamais desprender tais pombas de sua vida. Ai dos condenados às antologias! Ai das pombas ou das cigarras que não morrerão jamais! Entre as condenações, talvez não haja pior, nesses casos, do que se estar condenado a não ser esquecido, pois o esquecimento também salva. Mas é dessa forma que muitos lavam a burra entre nós. Por um nada não são poucos os que chegam à gloria eterna; por um tudo, ao contrário, muitos se defrontam com seu próprio sepultamento sob as dunas do esquecimento e da morte.

A terceira de nossas subserviências é ao exterior. Basta um débil mental cruzar o Atlântico, em demanda de outros ares, para ganhar entre nós a estatura de gênio. A rendição dos nossos ao que for de fora nos permite a indizível graça de jamais atingirmos o conhecimento de nós mesmos. Só nos rendemos, fora disso, ao que houver de pior dentro da nossa formação. Norma da subserviência do exterior: ser sempre no outro aquilo que não conseguimos ser para nós próprios.

A quarta das nossas subserviências é à convenção de respeitabilidade. Fazer-se respeitável, ou parecer respeitável, veio a constituir-se na ânsia suprema do nosso espírito. A sanção acadêmica, as glórias adquiridas, à dura força, pela autolouvação ou lavação grupal: assim se alcança o remate da nossa trajetória existencial. Essa é a subserviência ao respeitável.

A quinta das nossas subserviências é o culto do chefe, seja qual for o chefe, mesmo sem ser chefe de jeito nenhum: ser chefe é, de certo modo, participar da divindade. Rir e chorar com o chefe: tal a norma de tal subserviência, a subserviência ao chefe. Os múltiplos coronelismos regionais, transplantados para as letras, as ciências e as artes, encarregam-se de fazer o resto até culminar na transformação do culto do chefe em dogma, jamais periclitante ou moribundo. Dessa forma, não poucos têm deixapo de lavar a sua burra. O chefe está em tudo, multiplicado em chefes, embora não haja chefe algum. De um ponto de vista teológico, teríamos a diluição do chefe nos chefes. A infinita multiplicidade deles terminou por gerar uma espécie de panteísmo do chefe.

Outras espécies de subserviência podem se considerar ramificações das cinco formas assinaladas. Essa subserviência ampla, total, abissal – com suas frentes, seus acordos, suas miscigenações ideológicas, etc. –, não seria a nossa forma de nos inclinarmos metafisicamente à totalidade do real que até agora conseguimos apreender?

Esse desejo de lavar a burra, de qualquer jeito, não seria ainda, de nossa parte, uma tentativa de ratificar, pela continuidade da rotina – aqui adorada como um deus ou como o perpétuo devir –, o preceito áureo do deixa-disso, ou do deixa-pra-lá, para ver de que jeito a coisa um dia fica? Lavemos a burra, irmãos. E viva a nossa inocência!

por: Ângelo Monteiro


In: Monteiro, Ângelo. “Tratado da lavação da burra ou introdução à transcendência”. Escolha e sobrevivência: ensaios de educação estética.

fonte mundo circundante



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