Roberto Jefferson e José Dirceu converteram a luta pelo poder em embate pessoal, expuseram a política brasileira como um mercado e agora serão julgados pelo Supremo
Encheu o peito e a sala:
“...Eu sei que vou chorar
A cada ausência sua eu vou chorar
Mas cada volta sua há de apagar
O que essa ausência sua me causou...”
Ao se aproximar da quadra final, modulou a dramaticidade na voz:
“...Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida...”
O barítono Roberto Jefferson, presidente do PTB, cantava para Lula, presidente da República, recostado num sofá vermelho. Com sorrisos cúmplices, celebravam a partilha de codornas recheadas — um dos pratos favoritos do presidente —, harmonizadas com Don Laurindo, vinho de Bento Gonçalves (RS).
Estavam ladeados pelos ministros José Dirceu (Casa Civil) e Walfrido Mares Guia (Turismo), fiadores da renovação dessa aliança governista. O pacto tinha lastro no caixa do PT para pagamento de dívidas eleitorais do PTB e, principalmente, nas nomeações de petebistas para áreas-chave dos ministérios, empresas e fundos de pensão estatais. Em contrapartida, o PTB se manteria alinhado ao Palácio do Planalto, estendendo tapete vermelho aos dissidentes da oposição que o ministro Dirceu continuasse a enviar, como parte de seu projeto de construção da “maior base aliada da História republicana”. O PT elegera 91 deputados federais. O PTB inchara nos 19 meses seguintes à eleição de Lula: elegeu 26 e projetava chegar a 56 deputados.
Uma noite de primavera em Brasília
Lula tinha motivos para sorrir enquanto escutava o presidente do PTB trilhando os versos de “Eu sei que vou te amar”, de Vinicius de Moraes: outro mundo é possível em Brasília. Jefferson passara duas décadas qualificando petistas como “demônios”, a pleno pulmões, na tribuna parlamentar. Agora, integrava-se ao coro, como um solista seduzido pela partitura do poder. À saída do jantar, Lula decidiu tornar aquela quinta-feira, 14 de outubro de 2004, inesquecível para o anfitrião: — Eu daria a ele (Jefferson) um cheque em branco, e dormiria tranquilo —, declarou aos jornalistas, enquanto ajeitava a gravata listrada de cinza, preto e branco.
As lembranças dessa noite primaveril de oito anos atrás empalideceram na memória de Jefferson. Era tudo verdade? — Ninguém mente cantando — defende-se na sala de uma casa na Serra fluminense, no meio do Caminho Novo, atual BR-040, desbravado no século XVII pelo bandeirante Garcia Rodrigues Paes (a empreitada reduziu em duas semanas o tempo de transporte de ouro de Minas para Lisboa, acelerando a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio.) É o seu refúgio, a 1,3 mil quilômetros do Palácio do Planalto.
Senta-se com esforço. A contração de dor no ponto ainda inflamado da coluna vertebral o conduz a uma soma das perdas colaterais na cirurgia recente, para extração de um tumor de 4,9 centímetros no pâncreas.
— Quatro quintos do estômago, o duodeno, um metro e meio de intestino delgado e o apêndice… Me levaram mais ou menos dois quilos de órgãos internos — calcula, com amarga ironia.
Sobre a mesa de centro estão dois livros . Um é “Anticâncer”, do neurocientista francês David Servan-Scheiber, morto no ano passado, depois de duas décadas de batalha contra a doença no cérebro. Outro é “Justiça: O que é fazer a coisa certa”, do filósofo americano Michael J. Sandel. Nos intervalos, acompanha pela televisão as sessões do Supremo Tribunal Federal.
— Todos vão ser condenados — divaga com a experiência de advogado criminalista acumulada em 33 anos de profissão e duas centenas de júris. Como o deputado que sublimou o mandato ao denunciar o mensalão, sabendo que teria o mandato cassado, parece resignado: — O Supremo desmontou a tese do caixa dois do PT, que tinha no Zé Dirceu seu maior advogado. E ainda vamos ver o processo do caso dos empréstimos consignados do BMG, que ficou separado. Ali tem a assinatura do Lula, atos de ofício, em decreto e em carta aos aposentados, além de oito reuniões do Dirceu com a direção do banco. Tem sofrimento? Tem. Mas é isso aí, estamos vivendo a força plena da democracia.
Por trás do julgamento do mensalão existe uma história de paixão e ódio na política protagonizada por Jefferson e Dirceu — homens que já dedicaram um terço de suas vidas ao cultivo de uma inveterada, absoluta e mútua aversão. Opostos em quase tudo, Jefferson é sanguíneo na proclamação e Dirceu é frio na dissimulação.
— Nunca tive nenhuma divergência com ele — repetia Dirceu, diante do adversário na Câmara, acrescentando: — Com exceção das diferenças políticas, de participação no governo, de vida, de história, ideológicas e programáticas.
Ele nega, repele, rejeita e repudia toda e qualquer acusação, e também não quis fazer comentários para esta reportagem. Num único depoimento antes de ser cassado, insistiu 1.372 vezes na palavra “não”. E arrematou: “Vou repetir até o fim da vida: não participei, não autorizei, jamais concordaria com compra de voto ou de compra de parlamentar ou de mensalão”.
O fascínio pelo poder levou Dirceu e Jefferson à luta, o personalismo derivou em embate pessoal. Estilhaçaram a aura de decência que a maioria do eleitorado creditara ao PT nas urnas, desde 1980. Expuseram a política brasileira como um mercado, no qual a moeda de troca são cargos nos ministérios, empresas e fundos de pensão estatais — estratégicos pelo potencial de negócios e também pela capacidade de privilegiar aliados e atrapalhar adversários.
— Ele se desentendeu conosco — acusou Dirceu, em público. — Queria capturar vários órgãos com nomeações, e nós não permitimos.
No STF, a fatia menor do mensalão
Recém-reeleito na presidência do PTB, pela quarta vez, Jefferson acha natural (“sujeito à crítica moral, mas não ilegal”) que os nomeados pelo partido captem recursos de empresas privadas fornecedoras do setor público. “Mas doações voluntárias, por dentro”, ressalva.
— O problema é que o PT fez menos de 20% do Congresso e ficou com 80% dos cargos no governo — retruca. Na sua lógica, existe uma linha tênue entre “o dinheiro que faz a política e a política que faz o dinheiro”. — Zé Dirceu e o PT usaram o governo, as diretorias de engenharia, compras, tecnologia, publicidade e operações para fazer dinheiro. E trouxeram a novidade do aluguel de bancadas para aprovar o que queriam. Antes apoiava o governo quem queria, hoje perguntam: vai liberar minha emendinha?
Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal começa a julgar Jefferson, Dirceu e meia dúzia de chefes partidários enrolados no pedaço exposto dessa malha de interesses privados tecida com dinheiro público.
O processo reúne apenas uma parte das transações — a menor fatia do mensalão. Como registraram a CPI dos Correios e a Procuradoria Geral da República, os bancos Rural e BMG repassaram “no mínimo” R$ 55 milhões a 18 empresas e 150 contas bancárias do grupo do publicitário Marcos Valério, que distribuía malas de dinheiro a alguns líderes da “base aliada”. Permanecem nebulosas outras transações. Numa delas, evaporaram R$ 238 milhões de cinco fundos de pensão estatais (Real Grandeza, Postalis, Centrus, Funcef e Núcleos).
Perdeu-se no tempo aquela noite de primavera em Brasília quando Jefferson e Lula, sob o olhar de José Dirceu, selaram um pacto na cadência dos versos de “Eu sei que vou te amar”. Oito anos depois, o que parecia chama virou incêndio no Supremo. Foi infinito enquanto durou, e reafirmou uma constatação do falecido Tancredo Neves: a política ilude mais que o amor.
“...Eu sei que vou chorar
A cada ausência sua eu vou chorar
Mas cada volta sua há de apagar
O que essa ausência sua me causou...”
Ao se aproximar da quadra final, modulou a dramaticidade na voz:
“...Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida...”
O barítono Roberto Jefferson, presidente do PTB, cantava para Lula, presidente da República, recostado num sofá vermelho. Com sorrisos cúmplices, celebravam a partilha de codornas recheadas — um dos pratos favoritos do presidente —, harmonizadas com Don Laurindo, vinho de Bento Gonçalves (RS).
Estavam ladeados pelos ministros José Dirceu (Casa Civil) e Walfrido Mares Guia (Turismo), fiadores da renovação dessa aliança governista. O pacto tinha lastro no caixa do PT para pagamento de dívidas eleitorais do PTB e, principalmente, nas nomeações de petebistas para áreas-chave dos ministérios, empresas e fundos de pensão estatais. Em contrapartida, o PTB se manteria alinhado ao Palácio do Planalto, estendendo tapete vermelho aos dissidentes da oposição que o ministro Dirceu continuasse a enviar, como parte de seu projeto de construção da “maior base aliada da História republicana”. O PT elegera 91 deputados federais. O PTB inchara nos 19 meses seguintes à eleição de Lula: elegeu 26 e projetava chegar a 56 deputados.
Uma noite de primavera em Brasília
Lula tinha motivos para sorrir enquanto escutava o presidente do PTB trilhando os versos de “Eu sei que vou te amar”, de Vinicius de Moraes: outro mundo é possível em Brasília. Jefferson passara duas décadas qualificando petistas como “demônios”, a pleno pulmões, na tribuna parlamentar. Agora, integrava-se ao coro, como um solista seduzido pela partitura do poder. À saída do jantar, Lula decidiu tornar aquela quinta-feira, 14 de outubro de 2004, inesquecível para o anfitrião: — Eu daria a ele (Jefferson) um cheque em branco, e dormiria tranquilo —, declarou aos jornalistas, enquanto ajeitava a gravata listrada de cinza, preto e branco.
As lembranças dessa noite primaveril de oito anos atrás empalideceram na memória de Jefferson. Era tudo verdade? — Ninguém mente cantando — defende-se na sala de uma casa na Serra fluminense, no meio do Caminho Novo, atual BR-040, desbravado no século XVII pelo bandeirante Garcia Rodrigues Paes (a empreitada reduziu em duas semanas o tempo de transporte de ouro de Minas para Lisboa, acelerando a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio.) É o seu refúgio, a 1,3 mil quilômetros do Palácio do Planalto.
Senta-se com esforço. A contração de dor no ponto ainda inflamado da coluna vertebral o conduz a uma soma das perdas colaterais na cirurgia recente, para extração de um tumor de 4,9 centímetros no pâncreas.
— Quatro quintos do estômago, o duodeno, um metro e meio de intestino delgado e o apêndice… Me levaram mais ou menos dois quilos de órgãos internos — calcula, com amarga ironia.
Sobre a mesa de centro estão dois livros . Um é “Anticâncer”, do neurocientista francês David Servan-Scheiber, morto no ano passado, depois de duas décadas de batalha contra a doença no cérebro. Outro é “Justiça: O que é fazer a coisa certa”, do filósofo americano Michael J. Sandel. Nos intervalos, acompanha pela televisão as sessões do Supremo Tribunal Federal.
— Todos vão ser condenados — divaga com a experiência de advogado criminalista acumulada em 33 anos de profissão e duas centenas de júris. Como o deputado que sublimou o mandato ao denunciar o mensalão, sabendo que teria o mandato cassado, parece resignado: — O Supremo desmontou a tese do caixa dois do PT, que tinha no Zé Dirceu seu maior advogado. E ainda vamos ver o processo do caso dos empréstimos consignados do BMG, que ficou separado. Ali tem a assinatura do Lula, atos de ofício, em decreto e em carta aos aposentados, além de oito reuniões do Dirceu com a direção do banco. Tem sofrimento? Tem. Mas é isso aí, estamos vivendo a força plena da democracia.
Por trás do julgamento do mensalão existe uma história de paixão e ódio na política protagonizada por Jefferson e Dirceu — homens que já dedicaram um terço de suas vidas ao cultivo de uma inveterada, absoluta e mútua aversão. Opostos em quase tudo, Jefferson é sanguíneo na proclamação e Dirceu é frio na dissimulação.
— Nunca tive nenhuma divergência com ele — repetia Dirceu, diante do adversário na Câmara, acrescentando: — Com exceção das diferenças políticas, de participação no governo, de vida, de história, ideológicas e programáticas.
Ele nega, repele, rejeita e repudia toda e qualquer acusação, e também não quis fazer comentários para esta reportagem. Num único depoimento antes de ser cassado, insistiu 1.372 vezes na palavra “não”. E arrematou: “Vou repetir até o fim da vida: não participei, não autorizei, jamais concordaria com compra de voto ou de compra de parlamentar ou de mensalão”.
O fascínio pelo poder levou Dirceu e Jefferson à luta, o personalismo derivou em embate pessoal. Estilhaçaram a aura de decência que a maioria do eleitorado creditara ao PT nas urnas, desde 1980. Expuseram a política brasileira como um mercado, no qual a moeda de troca são cargos nos ministérios, empresas e fundos de pensão estatais — estratégicos pelo potencial de negócios e também pela capacidade de privilegiar aliados e atrapalhar adversários.
— Ele se desentendeu conosco — acusou Dirceu, em público. — Queria capturar vários órgãos com nomeações, e nós não permitimos.
No STF, a fatia menor do mensalão
Recém-reeleito na presidência do PTB, pela quarta vez, Jefferson acha natural (“sujeito à crítica moral, mas não ilegal”) que os nomeados pelo partido captem recursos de empresas privadas fornecedoras do setor público. “Mas doações voluntárias, por dentro”, ressalva.
— O problema é que o PT fez menos de 20% do Congresso e ficou com 80% dos cargos no governo — retruca. Na sua lógica, existe uma linha tênue entre “o dinheiro que faz a política e a política que faz o dinheiro”. — Zé Dirceu e o PT usaram o governo, as diretorias de engenharia, compras, tecnologia, publicidade e operações para fazer dinheiro. E trouxeram a novidade do aluguel de bancadas para aprovar o que queriam. Antes apoiava o governo quem queria, hoje perguntam: vai liberar minha emendinha?
Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal começa a julgar Jefferson, Dirceu e meia dúzia de chefes partidários enrolados no pedaço exposto dessa malha de interesses privados tecida com dinheiro público.
O processo reúne apenas uma parte das transações — a menor fatia do mensalão. Como registraram a CPI dos Correios e a Procuradoria Geral da República, os bancos Rural e BMG repassaram “no mínimo” R$ 55 milhões a 18 empresas e 150 contas bancárias do grupo do publicitário Marcos Valério, que distribuía malas de dinheiro a alguns líderes da “base aliada”. Permanecem nebulosas outras transações. Numa delas, evaporaram R$ 238 milhões de cinco fundos de pensão estatais (Real Grandeza, Postalis, Centrus, Funcef e Núcleos).
Perdeu-se no tempo aquela noite de primavera em Brasília quando Jefferson e Lula, sob o olhar de José Dirceu, selaram um pacto na cadência dos versos de “Eu sei que vou te amar”. Oito anos depois, o que parecia chama virou incêndio no Supremo. Foi infinito enquanto durou, e reafirmou uma constatação do falecido Tancredo Neves: a política ilude mais que o amor.
fonte:globo
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