segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Muito mais que um meio de transporte



O bonde de Santa Teresa ocupa vários espaços em minha casa. Ele está em quadros, réplicas, fotos e cartazes. Trazê-lo para dentro de casa é uma forma de prolongar o convívio prazeroso com o elemento determinante da vida no bairro. É o bonde que dita o ritmo de vida em Santa Teresa. Sua lentidão, em comparação aos modernos meios de transporte, é essencial para o estilo de vida buscado por quem aqui mora.
  • Quando você está dirigindo e encontra o bonde pela frente, não adianta se estressar. Ele anda nos trilhos e não tem como se desviar. Obrigatoriamente, ele impõe um momento de espera, de reflexão, que proporciona a contemplação das belezas do bairro, muitas vezes despercebidas na pressa do dia-a-dia. O bonde te obriga a ver e sentir Santa Teresa. Observar seu casario, perceber o perfume das flores, acenar para os vizinhos. Em seu interior, a poesia é ainda maior, na graça dos motorneiros, no encanto de quem viaja pela primeira vez, na sensação de flutuar em um veículo totalmente aberto e integrado à natureza.

    O bonde se encaixa perfeitamente às características topográficas de Santa Teresa. Trafega com desenvoltura por seu sobe e desce, curvas e ladeiras. Nos inspira e revela nossa verdadeira dimensão. Andar de bonde altera qualquer rotina. É impossível passar indiferente a uma viagem em seus bancos crus de madeira e ao som do ranger das rodas nos trilhos. Raimundo Fagner, que viveu um tempo no bairro, musicou uma inspirada letra de Abel Silva, que traduz essas sensações. A canção chama-se simplesmente Santa Teresa:

    Dez da manhã esse dia/é um bonde que me guia/sobre curvas e perigos/na lembrança dos amigos/Sobe o morro da alegria, desce a ladeira do medo/viaja ao meio-dia, força crua de um segredo/Esse dia posto ao meio, fio limite de uns olhos/Que me olham passageiros pelas ruas da cidade/Leio as cartas dos leitores/nos jornais, a madrugada/Viaja pra muito longe nesse meio-dia a dia/Nesse bonde lembro e esqueço/Tão passageiro é o dia.

    A importância do bonde vai além de ser o meio de transporte primordial e mais adequado ao bairro. Ele é uma experiência transcedental, metafísica, ele nos influencia, nos move em muitos sentidos, muito além dos literais. A luta dos moradores de Santa Teresa pela sua preservação sempre percebeu e envolveu essa dimensão maior. "Querem destruir a poesia que viaja nesse bonde", foi o mote de uma antiga campanha pela sua continuidade. "Nem tudo na vida é passageiro", diz outro, em feliz trocadilho.

    O bonde de Santa Teresa é mais do que um patrimônio cultural tombado. Sua importância não é apenas histórica, mas também imaterial, ligada ao nosso cotidiano, à nossa existência. É um fator de memória, de identidade, de pertencimento. Com ele temos uma relação afetiva, de ente querido. O bonde não nos impressiona como um objeto de arte. Ele é amado. Por isso feriu tanto o acidente que matou seis pessoas, no fim de agosto, em Santa Teresa. A imagem do bonde 10 reduzido a ferragens doeu nos moradores do bairro como as vidas perdidas.

    A insensibilidade dos governantes não percebe isso. Para eles, o bonde é apenas um objeto material, ao qual se pode atribuir um sentido qualquer, de meio de transporte ou bem turístico. O acidente serve aos seus propósitos de tirar dos moradores de Santa Teresa o que mais nos une. E isso não pode ser tolerado.

  • fonte:Direto da Redação

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