domingo, 19 de junho de 2011

A mobilização das favelas

Historiadora americana fala ao JC sobre as peculiaridades das comunidades no Rio e no Recife



Pesquisadora americana está estudando favelas do Recife desde 2009 / Michele Souza/JC Imagem



Há mais de 15 anos, a historiadora americana Brodwyn Fischer pesquisa favelas do Rio de Janeiro e, dois anos atrás, iniciou estudo semelhante na cidade do Recife. O trabalho nos morros cariocas resultou no livro Poverty of rights: poverty and citizenship in 20th century Rio de Janeiro(Uma pobreza dos direitos: cidadania e desigualdade no Rio de Janeiro do século 20), publicado em 2008 pela Stanford University Press, vencedor de quatro prêmios e ainda sem tradução para o português. Em recente visita ao Recife, para garimpagem de documentos em arquivos e visita a comunidades pobres, ela fez palestra no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sobre os mocambos nas duas capitais. Professora de história da América Latina e do Brasil na Universidade de Northwestern, em Chicago, Brodwyn Fischer, 40 anos, observa que os moradores de favelas cariocas não eram passivos nas décadas anteriores a 1950, como costumam ser retratados na historiografia. “Até no fim do século 19 há traços nos arquivos de negociações abertas entre favelados e o poder público. Nos anos 20 e 30, ajudados por advogados comunistas, já estavam entrando em juízo com processos de usucapião, defendendo-se judicialmente de processos de despejo, escrevendo cartas as prefeitos e ao presidente Getúlio Vargas, utilizando a estrutura organizacional das escolas de samba para fins políticos”, declarou em entrevista ao JC. As favelas, diz ela, surgem da necessidade, dos baixos salários, da falta de qualificação da mão de obra migrante e da especulação imobiliária.

Jornal do Commercio – Por que estudar favelas no Brasil?
Brodwyn Fischer - Sempre tive interesse na história urbana e na história da pobreza urbana. Não tem nada a ver com exotismo. Comecei a estudar a pobreza nos Estados Unidos, mas lá esse é um campo que já tem muitos trabalhos. Então parti para a América Latina e escrevi uma monografia sobre Buenos Aires (capital da Argentina). No doutorado, decidi vir ao Brasil, estudar favelas. Aqui se encontra uma rica produção intelectual sobre o tema.

JC – Qual a cidade brasileira escolhida para a pesquisa?
Brodwyn – São Paulo, mas fui ao Rio de Janeiro em 1993 e fiquei lá mesmo. Fui buscar a história social do Rio em processos nos arquivos públicos. Também me interessavam as cartas escritas pela população para o presidente Vargas (Getúlio Vargas, 1882-1954). As pessoas pediam todo tipo de coisa: estou precisando de moradia, de carteira de identidade. Na época, tinha uma coisa bem parecida com o bolsa família, que era o abono familiar, supostamente para famílias que tinham mais de dois filhos matriculados na escola. As pessoas escreviam pedindo esse benefício.

JC – O que os documentos revelaram?
Brodwyn – Comecei a ver que a questão dos direitos, de uma coisa que hoje chamamos cidadania, era muito mais importante para eles do que se imaginava. Lendo os documentos, percebi que eu queria escrever não mais sobre a história social da cidade, mas sobre a história da cidadania dos pobres dessa cidade. Para eles, conseguir direitos trabalhistas, estabilidade e trabalho formal era importante. Mas ter a carteira assinada era um tipo de passaporte. A pessoa com carteira assinada, por exemplo, se fosse pega pela polícia, teria seus direitos civis respeitados. Não ficaria presa por tanto tempo. Era uma conquista.

JC - Qual é a história das favelas?
Brodwyn – A história das favelas é complicada, tem a questão da formação física, social e jurídica. Mas a favela existia bem antes de aparecer a palavra favela. Na verdade, no século 19 esse tipo de casebre era muito comum até nos jardins das casas-grandes. Os barracões ficavam muito próximos da cidade formal. Uma classe média decadente ganhava dinheiro alugando chão aos pobres. E até barões se beneficiavam disso. Como ocupavam posição social mais alta, eles tinham pessoas encarregadas de alugar os cortiços aos pobres. As favelas, muitas vezes, eram extensão desses cortiços.

JC – Alguém que a senhora destacaria?
Brodwyn – Tinha um italiano, Emiliano Turano, sapateiro, que chegou sem nada no Brasil e era encarregado de um cortiço no Rio de Janeiro. Ele viu que tinha um terreno atrás do cortiço quase sem ninguém morando lá. Então ele começou a se dizer dono do imóvel e foi se apoderando do terreno, cobrando aluguéis. Figuras da alta sociedade carioca, como Eduardo Duvivier, neto do loteador original de Copacabana, cobravam aluguéis por anos em favelas que eles sabiam não ser da sua propriedade.

JC – Favelas sempre foram consideradas um problema?
Brodwyn – Só no final do século 19 e começo do século 20 as pessoas começam a pensar na favela como um problema, uma coisa que não podia existir dentro da cidade. Surge a ideia de que a cidade devia ser separada daquele tipo de moradia. Uma ideologia urbana que vinha da Europa, dos EUA, o início do urbanismo na sua forma moderna. Morar em cortiço, mocambos, principalmente em áreas alagadas, tinha alguma coisa a ver com doenças, mas ainda não se sabia exatamente o quê. No princípio do século 20, já se vinculava de alguma forma a varíola, a febre amarela e a tuberculose com moradias pequenas, muitas pessoas juntas, pobreza. Por esse viés da saúde pública, era preciso tratar das doenças e um jeito de fazer isso foi destruir os cortiços.

JC – Isso muda a relação da cidade formal com a favela?
Brodwyn – Quando as favelas crescem, as pessoas começam a falar muito desses lugares. No Rio, são associados a samba, capoeira e malandragem. Você começa a ver uma mudança na ideia de favelas. Se por um lado tem esse pensamento de que elas não deveriam existir nas cidades, ao mesmo tempo a cidade não pode existir sem elas. É uma relação muito complicada entre a favela e a cidade, que não é unicamente dizer que as pessoas que moram nas favelas trabalham para aquelas que vivem na cidade formal. Existe outro tipo de conexão, envolvendo pessoas de todos os níveis sociais que se beneficiam de alguma forma da favela. Pode ser o aluguel que a pessoa cobra por terreno do qual não é dono. Pode ser o benefício de um político de poder ganhar voto só protegendo essa população das malhas da lei. Cria-se esse tipo de dependência, que varia.

JC – Essa situação também acontece no Recife?
Brodwyn – Estou pesquisando aqui há dois anos, mas muito devagar. Percebo que a questão dos mocambos era totalmente entrelaçada com a política da cidade. Encontrei no Arquivo Estadual petição de moradores pedindo isenção de impostos. A pessoa não tinha vergonha de pedir favores ao prefeito. Vi conflito, que eu estudei muito no Rio de Janeiro, entre grileiros e a população. No Recife, o caso mais sério que encontrei foi nos anos 20, na comunidade de São Miguel, em Afogados. Eles formaram a Liga de Proprietários Pobres, que até hoje está lá, e com ajuda de comunistas, não tenho certeza absoluta, tentavam lutar contra uma ordem de despejo. Nesse momento, moradores de muitas favelas se organizam e criam os primeiros movimentos sociais grandes.

JC – Há semelhanças entre as favelas do Rio e do Recife?
Brodwyn – O trabalho aqui ainda está muito no começo. Não sei, ainda, quão relevantes estas pesquisas vão ser para o Recife, mas me atrevo a dizer que estou muito impressionada, até agora, com o grau de semelhança entre as duas cidades. Agora, a organização dos mocambos começa mais cedo aqui do que no Rio de Janeiro.

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