Zuenir Ventura, O Globo
No
Brasil, as tragédias anunciadas ou previsíveis ocasionadas por descaso e
imprevidência recebem todas o mesmo nome: fatalidade. Assim são
classificados as chuvas e os desabamentos que matam centenas de pessoas a
cada verão, assim também foi qualificado o incêndio da boate de Santa
Maria por seus donos.
Em nota, eles afirmam “a bem da verdade” que
a empresa estava em “situação regular”, com o “sistema de proteção e
combate contra incêndio aprovado pelo Corpo de Bombeiros”.
Se
estava tudo bem, nada fora de ordem, se as normas de segurança eram
rigorosamente cumpridas, é fácil atribuir a responsabilidade à
“fatalidade”.
Portanto, a conclusão cínica é que ao destino deve
ser debitado tudo o que contribuiu para a morte de 230 pessoas e
ferimentos em mais de 100: superlotação, plano de prevenção vencido,
inexistência de saída de emergência, artefatos pirotécnicos com fogos de
artifício, uso de revestimento acústico altamente inflamável, falta de
fiscalização.
Em suma, como disse o delegado logo após as primeiras investigações, “a boate Kiss não podia estar funcionando”.
A
bem da verdade mesmo, o nome para a culpa por esse e outros episódios
trágicos não é fatalidade, mas impunidade, uma espécie de mãe de todos
os vícios nacionais, não apenas da corrupção. Aqui se faz e aqui em
geral não se paga.
Pode-se alegar que incêndios em boates
acontecem em toda parte — no Japão, na China, na Europa, na Argentina.
De fato. Mas a diferença é que em Buenos Aires, por exemplo, tragédia
semelhante ocorrida em 2004, com 194 mortos, levou o dono à prisão por
anos e provocou mudanças drásticas no sistema de segurança das casas
noturnas.
Aqui, há 52 anos houve o incêndio do circo de Niterói, o
maior da história. A comoção geral, a repercussão internacional, a
mobilização das autoridades (o então presidente Jango visitou as
vítimas, o Papa enviou mensagem de solidariedade, houve jogo com Pelé e
Garrincha), a indignação e o clamor popular foram parecidos com a reação
de agora.
Acreditava-se que a morte de mais de 500 pessoas iria
pelo menos servir de lição, pois as autoridades prometeram logo
“rigorosa apuração da culpa” e medidas enérgicas de segurança.
Mais
ou menos como naquela época, as inúmeras promessas de providências
estão disputando espaço no noticiário com o relato da dor dos que
ficaram.
Governadores e prefeitos anunciam varreduras e em algumas cidades estabelecimentos já foram interditados por falta de segurança.
Por que só agora?
De
qualquer maneira, vamos esquecer que as providências já deveriam ter
sido tomadas muito antes, pois mais do que legislação o que falta é
aplicação da lei e fiscalização, e vamos torcer para que dessa vez a
tragédia sirva realmente de lição.
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