segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

“Os ricos mais ricos e os pobres mais pobres”

Participante de atividades do Fórum Social Temático de Porto Alegre, Samuel Pinheiro Guimarães, o ex vice-chanceler de Lula e alto representante do Mercosul diferenciou, em entrevista ao jornal Página/12, a integração do comércio, falou sobre a crise econômica mundial e de suas próprias contradições. "A conta está chegando ao povo para que a pague. Os bancos e as companhias de auditoria iniciaram a crise e a montaram e depois explodiu tudo. Os governos socorreram os bancos. Os bancos seguramente vão terminar em boa situação".



Porto Alegre - Samuel Pinheiro Guimarães está fora do Itamaraty, a Chancelaria brasileira e é considerado um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Trabalha há um ano como alto representante (diretor) do Mercosul por sugestão de Lula e aceitação unânime da Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Ele concedeu entrevista ao Página/12, em Porto Alegre:

– Não lhe toca um mundo fácil para estar responsável pelo Mercosul.

– Não, ainda que as situações sejam diferentes em diferentes países e continentes. Na Europa predominam os programas de ajuste financeiro e pressão muito forte sobre a população em geral. Todas as medidas são contra os mais pobres e contra os trabalhadores. Ao mesmo tempo estamos vendo o resultado final do processo. Os bancos sofreram prejuízos. Receberam aporte dos governos para comprar títulos. Agora os governos nacionais aumentam impostos e reduzem programas sociais e modificam a situação do trabalho para pagar dívidas. Neste ponto a conta está chegando ao povo para que a pague. Os bancos e as companhias de auditoria iniciaram a crise e a montaram e depois explodiu tudo. Os governos socorreram os bancos. Os bancos seguramente vão terminar em boa situação. Os bancos que emprestaram sabiam que os governos não poderiam pagar. Mas emprestaram. Então vão contra o povo.

– E nos Estados Unidos acontece a mesma coisa?

– É um pouco diferente. Há certa ênfase em aumentar os empregos, mas houve uma reação de direita muito grande. O governo quer aumentar impostos sobre os mais ricos e lhe dizem que isto é comunismo. Os bancos foram salvos, mas assim mesmo Barack Obama não se salva da agressão. Assim mesmo, como há certa necessidade de ajuste fiscal, o governo provavelmente acabe aumentando os impostos. A pergunta é: a quem ajustará? Aos mais ricos ou a os mais desfavorecidos?

– Ásia e China?

– É diferente. Há uma grande preocupação de que se reduza drasticamente o crescimento pelo descenso da atividade nos Estados Unidos e Europa. Não estou tão seguro de que isso aconteça. Assim mesmo as taxas de crescimento serão elevadas. Pensavam que para 2010 a taxa seria de oito e foi de dez por cento.

– Que há no fundo da crise?

– O problema é o controle político, a hegemonia política em longo prazo.

–O controle de que?

– A crise é das pequenas e médias empresas. As grandes estão bem. E os trabalhadores estão mal. Os velhos, os jovens e as empresas de porte médio estão em dificuldades. Esta crise é diferente da crise de 1929, quando o capitalismo era muito mais nacional e o grau de globalização financeira e produtiva era menor. A pressão sobre o governo para resolver a crise era maior. Hoje é menor. Com o Occupy Wall Street não chega. Há que tomar medidas. O pré-candidato presidencial Mitt Romney pagou menos de 15% de Imposto de Renda e sua secretária, 30%. A demora em resolver a crise é preocupante e a instabilidade ronda. Por sorte hoje não tem como chegar a uma guerra como a Segunda Guerra Mundial, mas cuidado com as guerras localizadas.

–A América do Sul não está em crise.

– Não. O problema é outro: os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

– Não melhorou essa situação?

– Vou colocar em outros termos. Sou menos rico que o outro se ele tem mais que eu. Eu posso aumentar minha renda, mas ele pode estar se distanciando. É bom que 30 milhões de pobres tenham saído de sua situação vulnerável. Mas os super-ricos no Brasil têm rendimentos incríveis. Falo de pessoas. Os bancos não existem. Existem os acionistas dos bancos. Existem os mecanismos de concentração.

– E o Estado?

– O governo tenta concretizar mecanismos de desconcentração, como bolsa-família, a ajuda aos estudantes, a Contribuição Universal por Filho na Argentina. E está muito bem. A fonte dos problemas é a distribuição da riqueza, não do ingresso. Mas temos que lembrar que os Estados são criados pelas classes hegemônicas. Incluo aí como são escolhidos os juízes, para dar o exemplo de um setor específico. Os governos em geral são instrumentos das classes hegemônicas. O Partido dos Trabalhadores, inclusive no Congresso, não só no Executivo, ocupa uma parte do poder, não todo o poder. As classes conservadoras querem participar com suas posições ante as tentativas de redistribuição. Dá-se em todos os campos.

– Em quais?

–O que é o orçamento? É o que o governo ou o Estado arrecada com impostos. Depois se dá a luta para recuperar esses impostos. Estão os grandes empréstimos dos bancos oficiais a taxas de juros mais baixas. Os ricos estão contra as políticas sociais públicas, mas quando se aplicam querem que sejam privatizadas e terceirizadas. Falo deste assunto porque se avançou muito em tudo isso. O esforço foi muito grande, com uma resistência conservadora permanente que vem de séculos.

– Como a crise afeta os países do Mercosul?

– Hoje os países sofrem um impacto de diferente tipo. Um da China e outro dos Estados Unidos e da crise européia. Os chineses são grandes demandantes de produtos agrícolas e minerais. Isto afeta os quatro países. Isso, por um lado, gera um ingresso muito interessante. Por outro lado, a China é uma grande provedora de produtos manufaturados a preços baixos, o que afeta as estruturas industriais e o funcionamento do Mercosul em relação ao seu comércio interno. Diminuem os incentivos aos investimentos industriais. Se você é investidor não vai colocar seu dinheiro para montar uma fábrica para vender produtos manufaturados aos chineses, mas em agro ou mineração, para vender matérias primas a eles.

– É uma relação necessária e ao mesmo tempo contraditória.

– O importante é como transformar a relação com China para que os chineses contribuam com o desenvolvimento industrial. As populações são urbanas. Tem de haver emprego urbano. A agricultura emprega cada vez menos porque é de grande escala. Com a mineração acontece a mesma coisa. Além disso, os países sofrem variação de preços das matérias primas. Têm que aproveitar essas relações, mas não pensar que se pode viver eternamente delas.

– Há um ano que é o virtual chefe do Mercosul. Está satisfeito?

– Deixe-me lembrar algo. O Mercosul nasceu em 1991 sobre a base de governos neoliberais. Os que assinaram o Tratado de Asunción foram Carlos Menem, Fernando Collor, Andrés Rodríguez e Luis Lacalle, presidentes de governos tipicamente neoliberais, que pensavam na integração regional como um instrumento prévio à integração aberta com o mundo. E isso não pode ser. O regionalismo aberto é como um casamento aberto. É um contra-senso, porque os acordos de livre comércio com terceiros obviamente destruiriam o Mercosul em razão das tarifas zero. O casamento aberto implica que não há preferência. Isso dissolveria o Mercosul. Por isso ele tem que ser transformado em um instrumento de desenvolvimento industrial dos quatro países. Em qualquer sistema de integração os países maiores se beneficiam mais, mas deve haver mecanismos de compensação através da infra-estrutura. A visão atual do Mercosul ainda é de livre comércio. E essa visão choca com alguns exemplos da própria realidade. No comércio entre Brasil e a Argentina, 40% é automotivo, e não se trata de um intercâmbio surgido do comércio livre. É feito por multinacionais, não por empresinhas nacionais. Assim organizam a sua produção. Com liberdade de comércio e sem acordos, quiçá a indústria automobilística houvesse se concentrado em um só país. Terminar com essa visão, por isso, é urgente, e mais ainda pela ofensiva chinesa. O livre comércio não leva ao desenvolvimento. Leva à desintegração.

–Por onde haveria que começar?

–Por convencer os países maiores. O fundo de compensação que existe hoje é um passo muito pequeno. O Mercosul é como um carro que atolou no barro. O motorista acelera e joga barro em todas as direções, mas o carro não sai do lugar. Que fazer? Que os passageiros mais fortes saiam do carro e o empurrem. Nisso estamos. Se não é muita reunião, mas não se resolve nada. Ao mesmo tempo devo dizer que o comércio se expandiu, há muitos investimentos, principalmente dos países maiores. Mas isso é comércio. E a integração é outra coisa.

–O senhor é embaixador, foi ministro de Lula e vice-chanceler. Como foi sua formação?

–(Rindo) Uma explicação para aborrecer os diplomatas: meu tataravô ocupou o mesmo cargo.

– E outra explicação?

– Bom, na família da minha mãe havia empresários. Do lado do meu pai a família era de políticos abolicionistas e republicanos. Mas na vida a gente vai se fazendo com todas as contradições. Fui a um colégio de elite, o Colégio dos Jesuítas São Ignácio, no Rio. E ao mesmo tempo jogava futebol com os garotos das favelas. Comecei a ver o que tinha cada um e como era. Foi meu contato com as diferenças. Meu pai simpatizava com Getúlio Vargas, com Juscelino Kubitschek. Era anticlerical e ateu e me colocou num colégio de jesuítas. Eu estava em meio às contradições. O mundo é muito complexo, não? Fui à universidade para estudar Direito em 1958, uma das épocas mais politizadas do Brasil. Ingressei na política estudantil na época da política exterior independente. E em 1961 ingressei no Itamaraty.

– Qual é seu maior orgulho como vice-chanceler de Lula?

– Antes de Lula já me havia dedicado à luta contra a ALCA. Continuei e conseguimos, em 2005, que os países mais importantes da América do Sul não formassem uma área de livre comércio de toda a América. Também lembro a briga, no Brasil, contra os acordos de proteção de investimentos. A Argentina sofre muito, ainda hoje, com esses acordos que Menem assinou. O Ministério da Fazenda do senhor Antonio Palocci queria e eu não. Como sou amigo de Celso Amorim, que era chanceler, isso foi importante. Também pusemos muita ênfase na América do Sul. Foi uma diretiva do presidente Lula, mas faltava implementar. Fizemos. Aumentamos em 30% a dotação de nossas embaixadas. Obrigamos todos os diplomatas que tivessem como primeiro destino uma embaixada na América do Sul. Não na América latina, na América do Sul. É uma forma prática de compreender as realidades e as assimetrias. E bom, também está o terreno do pensamento. Já em 1975 escrevi sobre a importância de romper com o colonialismo português e com a África do Sul. Quando se estuda as coisas, a gente começa a compreender elas um pouco melhor, não é verdade?

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