Nomes como Roberto Bolaño e Alberto Mussa infiltraram novas ideias nas histórias de mistério
Ler a escritora inglesa PD James é entrar em contato com a vertente mais clássica do que chamamos vulgarmente de “romance policial”: sabemos que haverá um ou mais assassinatos ou delitos, ao menos um investigador e alguém a ser condenado nas últimas páginas. Um formato tão rígido, de montagem tão sólida, que fez o crítico francês Roger Caillois chegar ao extremo de afirmar que “o romance policial tem de renunciar a este nome (...). Já não é um relato, mas um jogo, já não é uma história, mas um problema”.
Mas em literatura tudo se desmancha no ar; gêneros se fundem e dão lugar a estruturas híbridas. Nas últimas décadas, inúmeros autores têm lançado mão do modelo policial para discutir novas ideias. É o caso do carioca Roberto Mussa. Seu recente, e ótimo, romance O senhor do lado esquerdo se ergue a partir do jogo de gato & rato de detetive-procura-criminoso, para investigar a libido e a moral do carioca com ares quase antropológicos. É curioso ver um escritor considerado “sério” se infiltrar num gênero ainda de repercussão tão “duvidosa”, sobretudo no Brasil.
Nessa incursão, Mussa acerta na mosca ao deixar explicito que o mistério e o saber pela metade são as bases da literatura ocidental. Lembremos de Dom Quixote, marco da história do romance, em que o narrador, já nas primeiras linhas, nos revela que é “vítima” de uma imprecisão, de um projeto falido de amnésia – “Num lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrar-me, vivia há não muito tempo um fidalgo...”, escreveu Cervantes. “O romance policial é um gênero misterioso, ninguém sabe muito bem de onde ele vem, onde vai, o que quer ser. Levanta muitas vezes problemas sem resposta”, atesta a pesquisadora Bella Josef.
O escritor chileno Roberto Bolaño (1950-1953) revelou em entrevistas que gostaria de ser um detetive de crimes brutais. Talvez por isso sua obra seja formada por modelos de espanto, por personagens que parecem que vão pular das páginas e apertar nossos pescoços. Ele lança mão do modelo policial para investigar os traumas da sua geração – aqueles que eram jovens demais no auge das ditaduras da América Latina. O melhor exemplo é o romance Estrela distante, sobre o suposto duplo de um poeta serial killer. Bolaño nos infiltra com dúvidas, com inúmeros “e se”, para lembrar que toda suspeita (ou mesmo toda lembrança) é, antes de tudo, uma ficção, que criamos e dela acabamos dependentes. Quer definição melhor do que seja literatura?
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